Cherry Wine





Pousei o copo vazio sobre o balcão, ignorando a onda de asco que me invadia involuntariamente, mas o que podia esperar em lugar como aquele? Saquei o isqueiro do bolso do casaco que insistia em permanecer molhado. Era o que restava para coroar a cena decadente em que me encontrava: acender um cigarro barato e tragá-lo como se aquela fumaça pudesse dissipar o nó que parecia prender meu peito. Era melhor que evitasse olhar-me no espelho, não ajudaria em nada ver-me naquela situação. Até poderia ser uma cena feliz, se meus pensamentos não fossem outros...
- Nunca imaginei vê-la nesse estado – começou da porta – Está deplorável.
Olhei-o com o mesmo desdém que havia recebido momentos antes, enquanto levava o cigarro novamente aos lábios, como se fosse algo realmente prazeroso. A vontade era a de respondê-lo como merecia, mas, mesmo levemente alterada pelo álcool ingerido, não perderia a compostura – como se isso fosse possível. Ainda assim, não contive um leve sorriso por vê-lo ali, mas não o imaginava adentrando um lugar como aquele. A menos que...
- Engano seu, meu amor. Nunca me senti tão bem em toda vida.
- Posso ver: bebendo conhaque vagabundo, fumando cigarro barato. Olhe para você por um momento e me diga que este é o seu lugar?
Eu ri alto jogando o resto do cigarro no chão imundo. Apaguei-o om a ponta do sapato caro que ele havia comprado em uma das suas viagens, no claro intuito de provocá-lo com isso. Levantei os olhos para encontrar os dele, que pareciam faiscar, antes de respondê-lo em tom ácido.
- Não era esse o lugar a que se referiu a pouco? – acenei com a mão de forma desdenhosa para o ambiente que me cercava. – Acredito que encontrei meu lugar, meu amor.
- Pare com isso, chega dessa cena. Está se expondo ao ridículo em meio a essa gente toda.
- Ou o quê? Você não tem mais nada comigo e, menos ainda está de fato preocupado com o que eu faço ou deixo de fazer, desde que isso não o atinja. Então volte para o confronto de seu apartamento e me deixe beber em paz, não vou incomodá-lo mais.
- Já chega! Vamos para casa.
Podia dizer, com toda certeza, que assistí-lo tomando aquela atitude era mais prazeroso que qualquer dose daquele conhaque horrível. Joguei uma nota para o garçom sorrindo à ele como se dissesse consegui o que queria, obrigada, enquanto era “arrastada” para fora daquela espelunca. Contive uma gargalhada que sequer o som a porta do carro batendo teria abafado. Era hora de encenar o papel de magoada que precisava das explicações dele, mas claro que um pedido de desculpa não viria tão facilmente.
- O que acha que estava fazendo? Queria pegar alguma doença? Ou simplesmente arrumar uma confusão e acabar morrendo sem qualquer motivo? Não quero pensar no que poderia ter acontecido se não tivesse vindo buscar você.
- Que diferença faria, oh, meu nobre salvador? – espezinhei – E não, não teria arrumado confusão alguma, apenas teria ido procurar um hotel se ainda tivesse dinheiro para isso, caso contrário, conseguiria...
- Quem acha que sou? Não permitiria que fosse para um hotel, nem mesmo que ficasse sem dinheiro. E conseguiria? Pare de falar como uma mulherzinha qualquer, você não é assim, então pare de baixar o nível, está bem?
 - Acho que essa pergunta deveria ser minha, - retruquei saindo do carro sem esperar que entrasse na garagem. Seria impossível ficar mais encharcada do que já estava.
- Podemos conversar como as duas pessoas adultas que somos, por favor? – segurou-me pelo braço para que o olhasse.
- Para que conversar se, no fim das contas, sempre serei eu a culpada por tudo? E falar para que não preste atenção em uma só palavra, não preciso mais.
- Sempre presto atenção a tudo o que tem a dizer.
Olhei-o seriamente por um momento, mas meneei a cabeça negativamente, mais para mim mesma que para que qualquer outra pessoa, sentindo o cabelo molhado grudar em meu rosto. Devia estar sob o efeito da bebida tenebrosa daquele bar, era a única explicação para uma alucinação como aquela. Era melhor simplesmente dizer tudo o que estava engasgado de uma vez:
- Você hoje deixou mais que claro o que pensa de mim, e isso me magoou muito. E não me importo se faz ou não alguma diferença para você, porque intimamente sei que não faz. – levantei a mão para impedir que me interrompesse – Parece que sou apenas mais uma de suas amantes, que estavam com você apenas porque podia comprar qualquer coisa que viesse a cabeça e não porque realmente quero estar, porque me faz bem. E foi bom que tenha me visto naquele lugar, porque assim, viu que não preciso disso tudo para viver. – apontei para mim mesma na esperança de que entendesse do que estava falando.
- Você não é mais uma das minhas amantes, será que não deixei isso claro o suficiente ainda?
- Sinceramente? – desviei o olhar para a luz que vinha de um poste na calçada, não queria que visse o quanto aquilo me machucava, já havia proporcionado diversão demais por um dia. – Não, não deixa nada claro na verdade. Tudo o que faz é mostrar que tem alguém para estar com você, quando ninguém mais o quer por perto. Compra-me com todos os mimos possíveis tentando compensar a falta de atenção, como se assim, quando eu me fizer necessária a seus planos, poderá ostentar uma bonequinha de luxo como troféu. E não vou ser usada descaradamente desse jeito.
- Tudo o que está dizendo não é verdade, e sabe disso. Nunca usei você, até parece que não sabe da importância que tem para mim!
Apenas sorri diante de sua afirmação tão veemente. A importância que me destinava era a mesma que havia destinado a seus sapatos de grife exclusivos, usados apenas para ostentar uma imagem que não condizia com a realidade. Não era nada além de mais uma em sua lista, com uma pequena distinção das demais: a única idiota que fora capaz de esperar e suportar todos os insultos e ainda assim, continuar esperando um afago. Aquilo já tinha chegado ao limite, não dava mais para ficar ali escutando algo que não era verdade. Baixei os olhos para meus pés e, por um momento quase me arrependi do que estava prestes a fazer, mas não seria eu se não o fizesse. E não me importava mais em ser chamada de louca, impulsiva ou qualquer outro adjetivo que ele quisesse me dar. Virei-me de costas para ele e sai caminhando pela calçada, como se passeando em um dia de sol. No máximo, no dia seguinte, teria um belo resfriado para me preocupar.
- Aonde pensa que vai? – gritou ele as minas costas.
- Para lugar de onde nunca devia ter saído.
- Vestida assim, bonequinha de luxo?
Parei no mesmo instante, congelando onde estava. Era isso que ele queria? Um escândalo em plena rua? Na frente da própria casa? Por mim tudo bem, não seria eu quem sairia com a imagem tão estimada maculada.
Balancei os ombros fazendo com que o casaco escorregasse por meus ombros, tirei os sapatos e os deixei em cima da pilha formada pelo casaco. Virei-me para ele e acenei, o sorriso que estampava meu rosto não poderia ser mais forçado, mas ainda assim o mantive, firme e confiante.
- Faça bom proveito de tudo, meu amor.
- Você não... – calou-se ante a compreensão de que não me importaria em sair caminhando pela cidade apenas trajando uma camisola.
- Sim, não vou levar nada do que é seu, se era esse o medo. A gente se encontra por ai, querido.
- Volte aqui! – bradou ele – Ainda não acabamos essa conversa!
- Não veja mais nada a ser dito, a não ser que queira ainda me ofender por não ser suficiente tudo o que já me disse hoje.
- Ah, cale a boca! – disse agarrando pelo braços trazendo-me para junto de si. – Por que, ao invés de falar tanto besteira, não a usa para outra coisa?
- Tipo o que? – questionei arfante.
- Você sabe onde quero tê-la.
Não respondi. Não era uma pergunta, mas sim uma afirmação, e eu sabia exatamente o que fazer depois dela. Deixei que seus lábios envolvessem os meus enquanto me carregava novamente para o carro.
Se era aquilo que tanto desejava, que assim fosse. Se era assim que me queria, que assim me tivesse...
Olhei para a cama contendo a repulsa que fazia meu estômago revirar, enquanto seus lábios passeavam pela pele de meu pescoço, desde quando não sentia mais a necessidade de ser tocada por ele daquela maneira? Em que momento suas mãos pareciam me ferir ao invés de acariciar? Quando passara a agir de forma mecânica sem sentir prazer no que estava fazendo? Afugentei aquelas perguntas da mente enquanto me ajoelhava diante dele. Afastei o cabelo molhado para que ele pudesse assistir ao fazia, como sabia que gostava que fizesse, encontrar aquele olhar já não era mais incentivador, mas sim parecia pressionar-me a fazer algo que não desejava, beirando até a severidade. Ouvi-o arfar enquanto meus dedos o tocavam devagar, anunciando o contato de meus lábios, no mesmo instante em que os seus se entrelaçavam em meus cabelos forçando a permanecer ali.
Satisfeito alçou-me pelos braços, os lábios tocando os meus com uma urgência que não conhecia, mas que também não me agradou. Um dia me sentira segura tendo seu corpo pressionando o meu contra aqueles lençóis, mas naquele momento desviei o olhar para que não visse, na penumbra do quarto, as lágrimas que rolavam por minha face. Suas palavras ecoando em meus ouvidos como açoites, fazendo-me sangrar em cada uma delas.
- Diga-me que poderia viver sem isso, bonequinha de luxo? – sussurrava no ritmo de seus movimentos. – Gosto de vê-la assim, abrindo-se para mim como se fosse o único que consegue levá-la ao êxtase. Diga que não gosta de sentir-me dentro de você assim? Que não gosta de tudo o que lhe dou? Não acha que é pouco o que lhe peço em troca de tudo isso?
Apenas assenti. Já não me julgava apta a balbuciar qualquer coisa. Era assim que me via? Alguém que comprava para satisfazer suas necessidades quando precisasse? Apenas a mulher que pagava, caro demais diga-se de passagem, para ter na sua cama todas as noites? Ótimo. Levantei-me imediatamente para que não se desse conta de que havia chorado. Não faria qualquer diferença, toda aquela conversa não surtira qualquer efeito. Mas o que esperava afinal? Uma declaração de amor de um homem que sempre tratou-me como um objeto em liquidação que comprava com qualquer trocado? Aquilo havia ido longe demais, mas ainda era tempo de pôr um ponto final na história.
- Aonde vai? – inquiriu ao ver-me cruzando o quarto com decisão.
- Preciso de uma bebida, não demoro – respondi passando os braços por um dos casacos disponíveis no closet. – Quer algo para beber também?
- Não, obrigada. Prefiro ficar com o seu gosto na boca por hora.
- Certo. – disse somente, deixando o quarto.
Acariciei a garrafa por um momento, olhando-a absorta repousada sobre a mesa a minha frente, antes de servir a última taça do meu vinho de cereja preferido. Acendi o último cigarro do maço que havia deixado na gaveta, deixando-me envolver pela fumaça. Era impossível não permitir que os olhos percorressem todo o comprimento daquele metal reluzente a meia luz. Passei os dedos lentamente pela superfície fria, vendo-a encaixar-se perfeitamente a minha mão. Levantei-a contra a luz que entrava pela janela, notando meus lábios curvados diante dela. O que tinha a perder? Já havia perdido o que para mim era o mais importante, ouvira coisas que jamais imaginaria ouvir, recebera rótulos que nunca me pertenceram. Conferi a munição e a engatilhei...
- O que está fazendo?
Sua voz tirou-me do devaneio em que havia entrado, fantasiando aquela cena. Olhei-o sem deixar que o sorriso que tinha surgido anteriormente desaparecesse. Era nítida minha satisfação.
- Esse, certamente, foi o melhor presente que me dera.
- Por que diz isso? – começou a aproximar-se receoso. – Gosto mais dos saltos que a deixam ainda mais voraz.
- Saltos não têm a mesma utilidade que a minha amiga aqui, - respondi, mordendo o lábio inferior. – Não tiram da minha vida aquilo que não me faz bem.
- O que não tem feito bem a você, meu amor?
- Por que fazer-me um questionamento tão óbvio? Do qual conhecesses a resposta melhor que eu mesma?
- Não, não possuo essa resposta. Por que não me conta enquanto voltamos para a cama?
- Não vou chupar você novamente, meu amor, se é esse seu intento. E respondendo a sua inquirição de antes: não, não gosto de tê-lo dentro de mim. Se um dia ansiei por momentos como o de hoje, você conseguiu acabar com esse desejo. Tudo o que senti hoje, foi nojo de você. Mas foi bom ter demonstrado que não passo de uma prostituta fixa que compra com presentinhos caros e mantém dentro do seu apartamento para quando precisa.
- Vai começar toda a discussão novamente?
- Não, pelo contrário, estou terminando com qualquer conversa nesse momento – apontei a pistola para o seu peito.
- Ora, pare de brincadeira e vamos para a cama, precisa de mais uma demonstração de que preciso de você. – respondeu rindo, dando mais um passo na minha direção.
Sorri para ele sem me mover um centímetro de onde estava, levando a taça aos lábios. Enquanto sentia o sabor da bebida aquecer minha garganta, deixei que meu dedo forçasse o gatilho efetuando o primeiro disparo. Ver o vermelho manchar o tom caramelo de sua pele fez com que um sentimento de liberdade me invadisse, estimulando-me a uma segunda investida. E por que não?
- Por que está fazendo isso? – questionou levando a mão ao peito ferido.
- Livrando-me daquilo que tem me feito mal. – respondi disparando novamente. – Definitivamente.
Era o suficiente. Descansei a arma sobre o tampo de mármore da mesa do escritório, terminando minha bebida. Fumei o cigarro tranquilamente assistindo-o agonizar a minha frente, não deveria estar sentindo aquilo, mas vê-lo naquela cena fora deveras mais prazeroso que estar com ele na cama naquela noite. Joguei o resto do cigarro no tapete persa que cobria o piso de mármore branco do apartamento imaculado, e coloquei-me de pé. Fechei o casaco e abaixei-me para olhá-lo uma última vez, toquei seus lábios com os meus sentido o gosto de seu sangue neles.
- Não se preocupe, quando me encontrarem, vou para o lugar ao qual pertenço de verdade. – levantei-me, e girei na porta para olhá-lo. Sabia que ainda podia me ouvir. – Ah, esse é meu novo cherry wine favorito.

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