Anjo de Gelo



Prólogo

Da janela do quarto em que repousava, o brilho da lua chamava atenção. Sem conseguir dormir a dois dias ela parecia abatida, o cansaço era visível em seu rosto e as olheiras denunciavam isso, profundas e de um violeta intenso, a pele branca estava ainda mais pálida e certamente havia emagrecido, era possível ver isso nas roupas que estavam cada vez mais largas. Ali naquela cidade ninguém a conhecia, por tanto ninguém a questionaria sobre qualquer detalhe.
Seus motivos para estar naquele estado, restariam mantidos em segredo pelo tempo que fosse necessário. Mais alguns dias bastariam para que seu corpo e sua mente estivessem normais novamente, mas por enquanto tudo era vivenciado inúmeras vezes com as lembranças que pareciam reais. Ela via, ouvia e sentia como se ainda estivesse vivendo aquele momento. Cada palavra pronunciada naquela noite a feriu profundamente. Sentia-se traída, enganada e estava profundamente magoada.
Tudo que desejava naquele momento, debruçada sobre o parapeito da janela, era que a morte ceifasse sua vida de uma vez por todas para que aquelas lembranças a deixassem em paz. Mas de que isso adiantaria? Sabia que estava sendo egoísta, que estava pensando apenas nela própria e talvez ele também estivesse sofrendo, o que era pouco provável. Mas era impossível saber.
Finalmente o cansaço a venceu e já não era sem tempo. Virou-se para o interior do quarto, e por um longo momento analisou a decoração daquele ambiente. Era um quarto comum de hotel, como a maiorias deles tinha a cama localizada exatamente no centro da parede oposta. O papel de parede remetia ao tema floral sem defini-lo realmente, abajures localizados em dois criados mudos, um de cada lado da cama.
 A penumbra a deixava ainda mais deprimida, pois aquelas sombras pareciam sussurrar seus segredos mais íntimos e isso lhe dava medo. As emoções tornavam a vir à tona de uma maneira intensa e, sem poder conter, as lagrimas rolavam pela face trazendo todas suas memórias novamente a mente como um filme de terror que era repetido inúmeras vezes. Era como se revisse tudo de novo. Como se ele lhe dissesse tudo mais uma vez. Como se as palavras pudessem lhe açoitar o coração.


 A alguns metros acima do hotel, sentado na laje de um prédio frontal àquele ele a observa. Ela ainda era a mesma menina. Frágil e bonita. Os longos cabelos negros ganhavam um leve tom azulado com a luz da lua refletida neles. Cuidava de longe daquela a quem jurou amar. Mas havia coisas de sua vida que poderiam oferecer riscos a ela e ofereciam. Mas vê-la naquele lastimável estado, por sua culpa, faziam-no experimentar uma dor antes desconhecida. Seus sentidos apurados perceberam algo diferente vindo do quarto.
O ritmo dos batimentos cardíacos foi reduzido a níveis que ele sabia que ofereciam riscos a vida dela. E isso não era um bom sinal. Para evitar a queda, às mãos já languidas, agarram-se as cortinas, mas foi um ato vão. O corpo caiu. Ele sabia que não deveria interferir, mas a amava e não podia deixar que nada acontecesse a ela. Havia jurado que perderia a sua vida, mas cuidaria para que ela não sofresse qualquer tipo de dano.
Seguindo seus instintos, saltou da laje diretamente para a janela do quarto em que ela estava desacordada. A moça parecia ainda pior, vista de perto. A pele já empalidecida pela falta de uma alimentação correta e o abatimento, agora estava ainda mais branca, parecia ainda mais frágil que no momento em que a conhecera. Era um sinal de que a vida dela correra sérios riscos realmente.


A Figura que se apresentava a sua frente não era conhecida, e se fosse sua mente a bloqueava qualquer lembrança daquele que estava ali. Mas ela sabia que lhe oferecia perigo e não era pouco. Sem saber o que fazer, e nem ter para onde fugir, não tinha escapatória, sua única chance era ficar e tentar enfrentar o que quer fosse acontecer ali. Se quisesse aquela criatura a mataria e ela, inconscientemente, sabia disso. Tentando pensar o mais rápido que a mente atormentada pelo medo e a impotência diante daquela situação lhe permitia, buscava um meio de se livrar de seu executor. Os olhos percorreram todo o perímetro do quarto, mas nada que pudesse ajuda-la encontrou.
Ele sentia prazer ao ver sua vítima aterrorizada daquela maneira, podia sentir o coração acelerado pela adrenalina na tentativa de entender o que ocorria ou mesmo tentando buscar uma alternativa que a libertasse dali a pele transpirando, uma forma de expelir o que sentia. Os olhos amedrontados que não mentiam nunca. Mas seu objetivo não era matá-la, nunca fora, era, simplesmente, apagar suas lembranças. Fechou os olhos e se concentrou na jovem que estava a sua frente.
 Todas as lembranças em seus mínimos detalhes desde que nascera. Tudo. O que havia vivido e que não recordava mais, as lembranças dos últimos anos, tornou a mente naquele momento. E Rendorf podia vê-las, vive-las e modificá-las de acordo com sua vontade.
O corpo da menina estremeceu, foi ficando flácido a cada nova investida dele. Aquilo não era normal. Algo estava errado, mas o que? O coração da jovem começou a falhar, ele a estava perdendo, seus batimentos não voltavam ao ritmo normal. A respiração falhou. E sem entender o que aquele homem poderia fazer com ela, sentiu o corpo perder as forças e começar a cair.
Suas mãos buscaram algo para se apoiar, tatearam as cortinas da janela que antes estivera encostada sem obter êxito em segura-las, encostaram até mesmo no parapeito da janela, mas ela já não tinha mais forças para lutar.  Era impossível se manter de pé, ficando inconsciente.


A penumbra do quarto deu lugar a uma imensidão negra. Tudo era um completo breu. Estava inconsciente. Dariel a tomou nos braços com cuidado. Sentiu a pele branca tocar a sua, a reação era a mesma que sentira na primeira vez que isso aconteceu. Caminhou até a parede oposta e a pousou sobre a cama. O rosto de aparência angelical estava pálido, olheiras profundas davam a impressão de um cansaço extremo.
Com um gesto delicado, estendeu a mão e tocou-lhe a face. Não imaginava o motivo do desmaio, mas isso não importava tudo o que queria era protegê-la. Sentou-se ao seu lado na cama mesmo que ainda fosse difícil ficar assim tão próximo dela. Era sempre tomado por uma torrente de emoções ao tocá-la, mesmo com o mais leve toque todo o seu corpo parecia ferver. Ele sabia que havia nascido para conhecê-la.
Havia algo errado na expressão da jovem que jazia sobre o leito. O rosto que geralmente trazia feições doces, naquele momento parecia estar se contorcendo em agonia como se algo a machucasse profundamente lhe causando uma enorme dor. Mesmo estando inconsciente lágrimas brotavam de seus olhos molhando o travesseiro.
Sem compreender o que acontecia, simplesmente tocava-lhe o rosto secando as lágrimas que insistiam em rolar pela face pálida. O que a atormentava não era o que havia acontecido no quarto, mas sim as suas lembranças que aquela criatura fizera ressurgir de uma maneira muito mais intensa. O motivo para não dormir era simplesmente esse: não queria lembrar-se de nada.
A cena era revivida de maneira tão real, que a dor que sentira naquele momento era sentida novamente. Tentava correr atrás dele, mas era impedida por todos que a cercavam, aquelas mãos a seguravam trancando sua passagem. Só queria poder sair em disparada e não deixar que ele partisse, ele não podia deixa-la daquela maneira, não depois de tudo que lhe dissera. Sem poder reagir, se entregou ao pranto, deixou que os soluços tomassem lugar do som do motor do carro partindo. Mas um solavanco a trouxe de volta. Estava acordada. Novamente naquele quarto vazio e escuro. E a certeza de que estava sozinha a inundou trazendo consigo uma sensação desoladora de desamparo. Estar com ele foi apenas uma ilusão criada por uma lembrança que fora transformada em sonho. Mesmo que a sensações parecessem tão verdadeiras.
Suas memórias eram revividas em forma de sonhos muito reais para ela. A sensação de que ele estava ali, cuidando, velando aquele sono forçado, não a abandonava. Era como se pudesse vê-lo ao seu lado mesmo que inconsciente. Mas os sonhos se tornavam cada vez mais conturbados, até se tornarem o pesadelo que tinha fim com a lembrança do dia em que ele a deixou.
Lembrava-se de cada detalhe e todos eles deixavam a cena ainda mais dolorosa. Recordava da chuva que caia deixando o dia úmido e frio, do cheiro da terra molhada que emanava do jardim que ficava em frente à sua casa onde costumavam passar horas enquanto estávamos juntos, podia até mesmo sentir o gosto que seus lábios tinham quando lhe dera seu último beijo. Mas tudo aquilo já bastava. Precisava acordar, se libertar daquelas lembranças e daquela sensação de fragilidade. Já havia passado do momento de fazer isso. Era preciso fugir dali. Aquele homem que a atacara voltaria, não sabia o motivo que o levara até ali, mas não esperaria para descobrir.
No meio da escuridão, com a luz da lua invadindo o dormitório pela janela escancarada, a jovem despertou. Abriu os olhos e tudo o que encontrou foi a escuridão. Estava completamente sozinha e, a sensação de solidão tomou conta dela, mas precisava agir mesmo que não estivesse se sentindo segura, a partir do momento em que ele a abandonara naquela varanda era apenas ela quem cuidava de si mesma. Sem pensar direito pegou a mochila, e deixou o hotel. Chegara a hora de enfrentar a realidade que tentara ignorar.
O Culpado

O sol estava nascendo, era ainda muito cedo. A cidade começava a despertar devagar. Pessoas saiam para seguir o caminho costumeiro para o trabalho, as conduções começavam a passar pelas ruas. O centro comercial era uma ampla avenida que ligava o resto da cidade rodeado por pequenas ruas. Ali podia se encontrar o que precisasse, desde hotéis ao centro financeiro da localidade. Numa dessas hospedagens, ele havia encontrado o esconderijo perfeito. Ninguém podia localizá-lo.
Quem o visse não imaginaria quem era e muito menos o que poderia fazer. Ali não passava de um homem comum. Com roupas elegantes – blazer e jeans – aparentava ter mais idade do que realmente tinha. Os cabelos negros como a noite cobriam-lhe a cabeça. Os olhos aguçados como o de um predador, apresentavam uma tonalidade diferente, algo entre o azul e o púrpura. A cada passo dado na calçada seu objetivo ficava mais próximo. Ele a havia seguido. Não poderia desperdiçar a oportunidade que surgira. Sabia onde exatamente ela estava. Tudo o que precisava fazer era não a deixar escapar.
Na noite anterior, quase obtivera êxito, mas algo dera errado. Ao invés de conseguir apagar suas memórias, por muito pouco não tirara a vida da moça. E percebendo que não estava sozinha como pensava, foi prudente desistir e esperar um melhor momento. Olhando para a sombra que se formava a sua frente, tentava entender o motivo de tudo ter saído de seu controle. Por que havia quase a matado ao invés de simplesmente ter eliminado as memórias que queria? Deveria ter funcionado como tantas outras vezes. Mas isso acabou sendo deixado de lado, havia chegado à esquina.
A fachada que se apresentava a sua frente era a mesma onde estivera na noite anterior. Observou cada centímetro do perímetro que circundava o prédio. Cada rosto que passava por ele era analisado cuidadosamente, observou também o alto de cada um dos prédios para ter certeza. Procurando algo, ou melhor, alguém que pudesse atrapalhar seus planos. Não avistou ninguém.
O sinal fechou e ele começou a caminhar. A travessia era um pouco longa, mas venceu a distância com facilidade. Ao abrir a porta os funcionários não se preocuparam com a sua presença, pois já estivera ali e os convencera de que era o irmão da jovem que atacara. O elevador levou cerca de dois minutos para parar no andar desejado. Ele não hesitou um segundo sequer. Pôs-se a caminhar rapidamente, dado o fato de que o longo corredor estava deserto. A porta logo foi alcançada. Os longos dedos tomaram a maçaneta. Sem perder tempo, girou a maçaneta e entrou. Mas o que viu o surpreendeu. O quarto estava vazio, nem mesmo as roupas estavam mais ali.
Rendorf estava surpreso. Não havia mais nenhum vestígio da estadia de Ayla. Mesmo assim, caminhou pelo o quarto a procura de qualquer pista que pudesse levá-lo até ela. E para sua surpresa, no canto do aposento, onde uma mesa fora improvisada como escrivaninha, havia vidro estilhaçado no chão. Ele foi até lá. Sobre a mesa, um porta-retratos estava caído. Encontrou uma foto rasgada em quatro partes. Unindo-as viu formada a imagem de Ayla e Dariel. Foi então que percebeu que o procurava sempre esteve ali. Ela voltara para a casa. Voltara para a vida que levava antes de tê-lo conhecido. Retomara sua rotina patética, sem saber o que realmente tinha a fazer. 
Guardou a foto no bolso. Aquela foto poderia ser usada para chantagear Dariel se precisasse. E deixou o dormitório como o deixara na noite anterior. Não demonstrando qualquer sinal de que o objetivo que viera cumprir fora estragado pela surpresa de não encontrar a jovem que antes esteve ali. Seu objetivo seria alcançado mais facilmente do que esperava. Mesmo com a pequena falha que cometera tudo seria resolvido com precisão. Avançou pelos terraços onde ninguém o veria. Escondido nas sombras planejava uma maneira de fazer o que já deveria ter sido feito, e dessa vez sem erros. Mesmo que para isso precisasse enfrentá-lo.
O Retorno

O Ônibus se preparava para fazer sua última parada depois de uma longa viajem. Os últimos passageiros se preparavam para desembarcar. Ayla olhou pela janela, o céu estava azul e o sol brilhava forte. Parecia um daqueles dias de primavera em que não se esperava chuva. Mesmo assim ela vestiu a casaco. Colocou a alça da mochila no ombro e desceu.
Cada lugar, cada rosto, cada casa, era conhecido para ela. A sensação de estar em casa novamente a reconfortava mesmo que minimamente. Era como se ali ela pudesse enfrentar qualquer coisa. Sentia-se invencível, mas sabia que era apenas uma sensação, pois estava abatida. Deixou o espaço da rodoviária com passos leves. Não imaginava como os pais a receberiam. A aparência melhorara depois daquela noite de sono, mesmo que turbulenta.
Não seria fácil esquecer o que vivera ao lado de Dariel, mas sabia que isso aconteceria, não havia nada que durasse eternamente. Era apenas uma pessoa comum, sem nada demais que pudesse oferecer a ele. O que de mais precioso possuía não apresentou resistência a oferecer-lhe. Deixando os pensamentos de lado, fez sinal para um táxi que passava naquele momento. O carro parou e ela o adentrou pela porta traseira. Não queria conversar, muito menos tinha animo para manter um diálogo educado com alguém. Entregou ao motorista o endereço que havia escrito em uma folha da agenda. O motorista a olhou pelo espelho retrovisor e isso há incomodou um pouco. Fazendo suas bochechas ganharem um tom rosáceo.
A viagem não durou muito tempo, mesmo assim parecia que não voltava para casa há anos, mas sabia que não ficara fora nem uma semana, mesmo que seu desejo fosse desaparecer literalmente daquele lugar. Enquanto a distância de sua casa diminuía, as recordações aumentavam. E ao descer do caro, avistou a fachada da casa. A mente foi inundada por tantas vivências, mas respirou fundo para manter o controle. Estava na hora de voltar a sua rotina normal. Aquela a que era acostumada antes de conhecê-lo. Pensando dessa maneira, pôs-se a caminhar para dentro.


Um Mustang negro parado do lado oposto da rua tinha o motor funcionando. Havia acabado de estacionar ali. O zunido baixo que se seguiu indicava que o vidro estava sendo baixado. Seu ocupante foi enfim revelado: Dariel. Ele a seguira guardando seus passos como prometera que faria. Tirou os óculos escuros para fitá-la ao longe, mas seu desejo era correr até ela e toma-la nos braços para que nunca mais vê-la daquela maneira.
Assim como para ela, as lembranças que guardava também eram fortes. Mesmo que não entendo o motivo de estar daquela maneira, deixou que as lágrimas caíssem. Ayla o tornara diferente, transformara a indiferença com que tratava os sentimentos em algo especial.  Mas agora estava segura, estava com a família. Estava em casa. Colocou os óculos escuros novamente para esconder os olhos vermelhos. Acelerou, e em questão de segundos já não era possível distinguir o carro ao longe.


Dentro da casa, mesmo lhe trazendo inúmeras lembranças, cada canto daquele lugar a fazia pensar onde estaria ele naquele momento que não junto dela? Ela evitava as perguntas que insistiam em fazer. Não estava preparada para tratar daquele assunto, não naquele momento. O tempo que passara fora não havia sido o suficiente para que pudesse falar disso sem que as lágrimas rolassem pela face. E não estava preparada para ficar em prantos na frente dos pais. Deteve-se apenas perante a mãe, caiu em seu abraço e deixou que as últimas lágrimas fluíssem. Diante da mãe todas as convicções não adiantavam de nada. Era impossível se manter forte como queria demonstrar.
Ao entrar em seu quarto, tudo estava exatamente como deixara. Os perfumes em cima da cômoda, os lençóis com aquele tom cinzento que gostava tanto, o edredom posicionado perfeitamente junto ao pé da cama. Tudo parecia não ter mudado, era como se tudo estivesse como antes. A esperança estava de volta, era como se a qualquer momento ele fosse entrar por aquela porta com aquele sorriso que iluminava os olhos e ia beija-la como tantas vezes fizera, mas Ayla sabia que era uma esperança vã. Aquilo jamais aconteceria. Precisava de um banho.
Enquanto a água aquecia seu corpo, fechou os olhos. Pensou em tudo que acontecera nos últimos anos: o desaparecimento da irmã, a separação dos pais, a quase desistência da faculdade, o encontro com Dariel, e por fim o estranho rompimento com ele. Mesmo que fosse difícil, ela tinha uma vida além dele. Sua vida não começara quando o conheceu, pelo contrário, sempre fez o possível para manter-se de pé quando tudo parecia querer desabar sobre sua cabeça. Desde que o conhecera esquecera-se dos amigos. Havia tanto tempo que não tinha um programa com eles.
Retornou ao quarto e encontrou uma bandeja com o café da manhã, a mãe lhe trouxera algo para comer como costumava fazer todos os dias. Mesmo sem fome, algo normal para os dias que estava passando, comeu a fruta e um pouco do cereal. Deixou a bandeja sobre a escrivaninha. Olhando a imagem refletida no espelho, os olhos tristes lhe mostravam alguém que nem de longe parecia a Ayla que todos conheciam.
 Mesmo tímida como sempre fora, era alegre e sorridente, não deixava que os amigos se abatessem ou ficassem tristes, mas havia alguns dias que apenas chorava. Com esses pensamentos em sua mente, tirou o robe da camisola e o pousou sobre a cômoda. Havia dias que não dormia realmente, pois sempre que tentava era atormentada pelas lembranças ou por sonhos que pareciam reais de demais. Mas agora precisava descansar.
A Tarefa

Dariel estacionava o Mustang em um posto de gasolina. Agora que Ayla estava segura, deveria cumprir a tarefa a que fora designado e que deixara de lado ao conhecê-la. Não havia mais motivo para temer, pelo menos acreditava nisso, agora ela acabaria se conformando e voltaria a sua rotina. Havia feito um juramento para mantê-la protegida e o cumpriria mesmo que isso custasse sua felicidade, o sofrimento que o afligia era imenso, mas estava disposto a aguentar tudo silenciosamente. Mas sabia que não poderia confiar em Rendorf. Ele não era o mesmo desde que havia sofrido aquela decepção, acreditava que Ayla era a culpada e faria qualquer coisa para conseguir ter sua desforra. Deixou esses pensamentos maus de lado e entregou as chaves ao frentista.
Mesmo que houvesse se passado alguns meses desde o último dia em que a vira não era nada fácil. Era impossível esquecer cada instante que passara ao lado dela. Sempre que fechava os olhos, a imagem de seu sorriso invadia seus pensamentos. A sensação de seus toques não abandonou sua pele. Tentava imaginar se ela já o havia esquecido. E sabia que a resposta era sim. Ayla deveria estar feliz novamente e talvez até tivesse encontrado outro namorado.
Pagou a gasolina e deixou o posto. A missão carecia de ajuda e ele sabia exatamente onde a encontrar. Esse era o motivo da viagem. E encontrar essa ajuda requeria um pouco de esforço. A viagem seria longa, mas era necessário faze-la.
 A rodovia que levava ao litoral do estado estava movimentada naquela época do ano. Caminhões carregando desde grãos a maquinas. Carros de diversos modelos, desde classes mais baixas a carros de luxo como o que dirigia. O sol havia sido coberto por nuvens que prometiam chuva forte. Tornando a praia pouco convidativa, mas que mesmo assim estava lotada.
Dariel acelerou e logo estava no perímetro urbano. Pessoas aproveitavam para fazer compras. As calçadas estavam abarrotadas, pessoas se espremiam para olhar as vitrines. Ele aproveitou para começar a procurar o estabelecimento que precisava encontrar. Não foi difícil.
A loja de artefatos místicos e ervas ficava em um prédio velho. Os vidros, sujos pela poluição dos carros, tinham estampados em letras vermelhas o nome do estabelecimento, que também era o nome da proprietária. As portas estavam abertas, e de dentro um nevoa saia para dar efeito e aumentar as vendas. O que no litoral chamava a atenção dos turistas.
Ele procurou uma vaga para estacionar. O que foi um pouco difícil, pois o grande movimento causado pelo período de férias escolares não deixava muitos locais vagos e de fácil acesso. Ele encontrou apenas uma vaga atrás do prédio que iria entrar. Naquela época do ano carros de luxo como o que dirigia não chamavam atenção. Perfeito para a discrição que a visita requeria.
Caminhou normalmente pela calçada, tentando se misturar aos outros turistas para não chamar atenção. Chegou à porta e por um instante ficou paralisado, seu corpo retesou. Não acreditava em quem estava vendo, não ali. No interior da loja, a dona logo o reconheceu. Fez sinal para que entrasse e aguardasse um momento. Ele se colocou ao lado daquela jovem morena, a pele de Ayla quase tocou a sua. Ela o olhou e lhe deu um sorriso, ele tinha a mesma serenidade como no dia em que se conheceram.
O cabelo negro lhe caia pelos ombros, o olhar parecia refletir a luz do sol, era difícil resistir à tentação de toca-la, mas era preciso. Ele sorriu de volta, mas percebeu que havia algo diferente. Os olhos verdes pareciam não o reconhecer. Mas como isso poderia ter acontecido? Um nome lhe veio à mente: Rendorf.

Memórias

Havia se passado pouco tempo desde que voltara para casa, mas ainda não estava totalmente recuperada das decepções que a vida lhe reservara, haviam sido coisas demais, mas tudo estava voltando ao normal com um pouco de esforço. Recuperou sua rotina, seus amigos. Voltara para a faculdade, mesmo que fosse um dos lugares que a faziam lembrar-se dele como uma maior frequência.
Estava exausta ao fim daquele dia, tentava ocupar o máximo possível seu tempo para manter a mente livre das recordações que sempre vinham atormenta-la quando estava sozinha. Fora a sua primeira festa depois do que acontecera para tentar se divertir um pouco como costumava fazer ao lado da irmã. Relaxou com um banho quente e se preparava para dormir. Enquanto secava os cabelos, reparou em sua imagem refletida no espelho estava voltando a ser a jovem alegre que fora antes.
Os olhos verdes reluziam, como se algo esperado fosse acontecer, algo que ansiava com toda a alma, algo, que mesmo tentando esquecer, sabia que se acontecesse ficaria completamente extasiada. Mas sabia que o que tanto almejava não aconteceria. Ele não voltaria. Sabia que era inútil esperar que voltasse e lhe pedisse perdão e lhe dissesse que a amava e que errara ao decidir deixa-la.
Deixou a toalha sobre o encosto da cadeira. Cada vez que se deitava naquela cama, ainda sentia o perfume da pele dele que parecia emanar da sua. Ali ele havia lhe jurado amor, ali ela havia se entregado a ele. Abraçando o travesseiro fechou os olhos. O sono que começa a chegar a deixou semiconsciente. Sentia e ouvia o que acontecia ao seu redor. Mas sem dar importância, deixou-se levar. Logo estava dormindo e, mais uma vez sonhava com aquele a quem jurou amor eterno. Enquanto a jovem descansava depois de uma festa que não fizera bem a ela, pois trouxe inúmeras lembranças à tona, não fazia ideia do perigo que estava correndo.
 Pela janela aberta, Rendorf a observava. Os olhos de um caçador, à espreita de sua presa. Observando a expressão serena da menina entendia a razão da paixão repentina de Dariel. Ela era realmente atraente. A pele pálida contrastava com o cabelo negro, ficava ainda mais bonita na penumbra que envolvia o quarto. Entrou sorrateiramente no dormitório. Os passos leves para evitar que Ayla despertasse. Parou junto ao leito e ajoelhou-se. Não resistindo ao impulso, tocou-lhe o rosto. A pele era macia como se estivesse tocando uma pluma. A comparação era perfeita. Ela estremeceu ao toque, mas não acordou. Esqueça isso, pensou.
Tomou-a nos braços com cuidado, agora devia despertá-la. Seu trabalho deveria ser feito com a pessoa consciente. Para que todas as lembranças fossem realmente revidadas e não confundidas com sonhos, assim ele poderia as modificar da maneira que quisesse.
- Ayla? – Chamou. – Acorde. – Sussurrou.
A moça virou o rosto para a voz e abriu os olhos institivamente. O olhar de espanto denunciava que o reconhecia do ataque no hotel, isso a assustava. Como ele a encontrara ali? Há quanto tempo vinha a seguindo? O que queria dela? Um grito se formou no fundo da garganta, mas foi sufocado. Ele cobriu-lhe a boca para evitar que os demais habitantes da casa acordassem. Mas ela não desistia fácil, se remexeu nos braços daquele que a prendia. As forças começavam a sumir. Era como se aquele ser maléfico exercesse um tipo de controle sobre ela. Como naquela noite, no hotel, sentiu a respiração falhar.
Rendorf sorriu. Sua missão estava cumprida. Todas as memorias que deveriam ser apagadas sumiram da mente da jovem. E Dariel jamais saberia seus verdadeiros motivos para aquele ataque. Viu os olhos verdes lagrimejarem. Ele revivia as mesmas lembranças que ela, estava funcionando. Ela não se lembraria de que um dia o conheceu e muito menos que esteve apaixonada.
- Bons sonhos, Ayla. – Sorriu e a colocou novamente na cama.
A expressão se suavizara. A exaustão a deixou inconsciente. O sorriso perverso não abandonava os lábios dele. Tudo estava perfeito. Nunca se sentira tão excitado como naquela noite, parecia uma criança. E sua traição jamais seria descoberta.

A Ajuda

Aqueles olhos. Verdes como esmeraldas brutas que refletem a luz do sol. Tinham o mesmo brilho fosco da joia no momento anterior a ser polida e lapidada. Quantas vezes não os vira brilhando de felicidade, ou os fez chorar. Mas agora estavam diferentes. Traziam um olhar inocente, como se nunca tivessem conhecido a dor. Ela estava feliz.
Depois de alguns segundos ela saiu da loja com outras meninas. Dariel segurou-se no balcão para se recompor, a respiração ofegante, as mãos trêmulas. Estava atormentado com a presença dela. Por que a encontrara ali? Talvez fosse apenas coincidência. A mulher que o fitava tocou-lhe a mão, levantou o rosto para olhá-la.
- Fique calmo. – A voz era suave assim como a expressão, os olhos negros eram aconchegantes e lhe ofereciam carinho. – Ela sabe que o conhece, mas não se lembra de onde. E como se estivesse tendo um dejávu. Uma impressão, ou vendo alguém com quem sonhara um dia.
- Eu notei. Mas foi apenas uma reação a uma pessoa que pode ter visto na rua. – Ele suspirou pesaroso. – Bom, não vim até aqui para isso, não posso perder o foco mais uma vez. Tenho uma missão a cumprir e você pode me ajudar.
- Posso?! – Ela o olhava com misto de certeza e interrogação. – Mas você sabe que não será fácil, não é? O que precisa fazer é simplesmente se concentrar. – Ela sorriu – Aquilo que procura está mais perto do pensa. – Ela apontou para uma porta escura.
O ambiente onde adentraram tinha aparência de um templo pagão. As paredes decoradas com diversas imagens de deuses desconhecidos aos humanos atuais. Uma mesa no centro, coberta por um tecido com aparência aveludada. Jamily convidou-o para se sentar. De frente a ele, a mulher fechou os olhos e tirou um objeto de dentro do bolso e entregou para Dariel. Era um pequeno cristal. Não possuía mais que cinco centímetros. Lapidado em forma de prisma podia ser confundido com uma pedra qualquer nas mãos de outra pessoa. Mas Dariel sabia que aquela pequena joia era poderosa e com certeza o ajudaria a encontrar aquilo que procurava.
- Como notei que você ainda não entendeu que sua missão depende exclusivamente de sua concentração, e que não percebeu que tudo está mais perto do que imagina - apontou para o objeto. – Quando se aproximar daquilo que deseja encontrar, ele lhe avisara.
- Como?
- Você saberá, basta se concentrar como já lhe disse. – Olhar transmitia verdade. – Siga seus instintos, iluminado. Não pense que não pode cumprir sua missão, pois lhe garanto, ela já foi cumprida. Mas não leve seus sentimentos tão a sério. A jovem que encontrou aqui não está preparada para abandonar a vida passada.
- Ela tem os mais puros sentimentos que conheço.
- Sim, seus sentimentos são puros e verdadeiros, mas não são por você, e sabe disso. Alguém a espera.


O que havia de errado? Por que sentira que já conhecia aquele homem? O fluxo de pensamentos que inundavam sua mente era intenso. Ela estava calada, não prestava atenção na conversa do grupo. Desejava voltar à loja para tentar encontrá-lo novamente. Mas seus pensamentos foram interrompidos. Júlia segurava seus pulsos.
- Você está bem? – Perguntou parecendo realmente preocupada.
- Estou. Por quê?
- Está calada desde que saímos da loja. – Ela sorriu, por um momento teve um inside. – Você não ficou dessa maneira pelo homem que encontramos, não é?
- Não consigo esconder nada de você, não é? Sim, estou pensando nele. Não sei, mas algo me diz que o conheço, não sei de onde ou se isso é apenas minha imaginação, mas sinto que conheço. Algo no modo como ele me olhou, como sorriu para mim. Só não consigo me lembrar de onde, mas já vi aqueles olhos e aquele sorriso em algum lugar.
- Esqueça isso, não passa uma impressão. Confesso que ele realmente chama a atenção, mas não fique pensando tanto em um estranho. Tudo de que não precisamos agora é que você se apaixone por um homem que não conhece. E lembre-se: Rendorf está esperando por você.
Ayla assentiu. Era verdade. Não podia dar muita atenção a um homem que não conhecia, mas essa sensação não a abandonava, ela sabia que havia algo a mais naquilo. Continuaram a caminhada pela calçada rente a areia. Ela nunca gostara dos dias ensolarados, e agradeceu por aquele estar completamente nublado, menos ainda do litoral. Tentava, ao máximo, evitar às viagens a praia.
- Vamos à praia agora? – Perguntou à loura com entusiasmo.
- Não. Eu prefiro voltar ao hotel, ou ficar no restaurante. Se quiser pode ir.
Sua amiga assentiu. Ela seguiu para o restaurante. Não estava disposta a ouvir conversas fúteis e não tinha ânimo para manter um diálogo com assuntos assim. Estava deprimida, cansada, talvez até chateada e queria que tudo voltasse ao normal. Sentia falta da única pessoa que sempre a entendera: sua irmã.
Já havia se passado dois longos anos desde que ela desaparecera, mas ainda sentia falta dela como se tudo tivesse ocorrido naquele dia. Sua família não tinha mais esperança de encontrá-la, muito menos com vida. Mas para Ayla era diferente. Algo lhe dizia que ela estava viva, e que não tardaria a voltar. Bastava esperar e confiar. Como sempre havia feito.
Pediu um refrigerante e sentou-se em uma mesa do lado de fora do restaurante. Ali estava sozinha e poderia ver o momento em que suas amigas deixassem a praia para acompanha-las até o hotel. Fechou os olhos por um momento. Precisava entender o que estava acontecendo com ela. Porque parecia que sua vida não era a que estava vivendo, tudo parecia ser apenas uma mentira. Algo que queriam que ela acreditasse. Sua vida parecia estar ao avesso.
O que não esperava aconteceu. Ao abrir os olhos novamente o mesmo homem que encontrara na loja estava se aproximando. Ela o fitou sem perceber tentando forçar sua mente a lembrar de onde o conhecia, mas não esperava receber o olhar de volta. Mesmo que de maneira inconsciente, reconhecia aqueles olhos, aquela maneira de olha-la.
Ele tinha os olhos verdes. O olhar era triste, mas com toda certeza conhecido. Relutante desviou o olhar para o chão. Mas o jovem não, e se aproximou de sua mesa. Ela sentiu os pelos do corpo se arrepiando. O coração acelerou, e a respiração ficou ofegante, as coisas faziam sentido.
No bolso da jaqueta que Dariel usava, o objeto brilhava e isso lhe provocou um leve calor no peito. Reparando o fenômeno, ele se lembrou do que Jamily havia lhe dito. Então tudo fazia sentido. Sua missão estava completa há muito tempo. Era ela. A jovem que amava. A menina a quem dedicara grande parte de seu tempo.
- Você? – Ela se levantou meio cambaleante. Os olhos assumindo um brilho de entendimento. Tudo estava claro novamente. – O que faz aqui?
- Lembra-se de mim?
- Sim. Dariel. – Mas a mente estava confusa. Um turbilhão de pensamentos passava por sua cabeça. – O que houve? Por que está aqui? Veio atrás de mim?
- Ele não possui efeito permanente sobre você. – Ele sorriu apontando a cadeira onde anteriormente estava sentada. – Precisamos conversar.
- Acredito que sim. – Ela voltou a se sentar. – Você está me seguindo?
- Não. Surpreendi-me ao vê-la aqui também. Mas não se lembrou no primeiro momento em que me reencontrou. Imagino que estivesse sobre a proteção mental que ele costuma exercer para evitar que a vítima se lembre.
- Rendorf. – O nome foi pronunciado como o de um criminoso. – Agora me recordo. Ele me atacou. – Ela levou à mão a cabeça. Uma dor de cabeça ficava insuportável. – Mas a imagem não é clara. Como se...
- Houvesse sido apaga. – Completou. – É isso que ele faz. Agora entendo o porquê das ameaças que fazia constantemente a você.
- Não quero mais falar sobre isso. Mas sim de nós. – Ela tocou a sua mão. – O que houve para que você me deixasse naquele momento?
- Ele estava ameaçando você. Caso eu não a deixasse. – Ele baixou os olhos fitando a mão dela sobre a sua. – E eu precisava cumprir a missão a que fui designado. Mas não percebi que já a havia terminado no momento que a conheci.
- Eu sou sua missão? - Ela pareceu não compreender o que Dariel queria dizer.
- Sim Ayla. Você tem uma história conturbada e não a conhece inteira. Seus pais esconderam de vocês a parte mais importante.
- Eles sempre tiveram segredos que aumentaram depois que Hadassa desapareceu. Mas eu preciso saber o que estão escondendo de mim. – Levantou-se. – Vou voltar para casa agora mesmo.
- Se você quiser eu posso levá-la. Agora esse é o meu dever. Zelar para que não sofra qualquer dano. Devo isso a você.
- Você também tem segredos comigo não é mesmo? E Rendorf tem participação nisso, tenho certeza.
- Não preciso mais esconder nada de você. Mas não vamos tratar desse assunto aqui.
Ela assentiu. Os dois seguiram para o hotel onde estava hospedada com as amigas. Dariel percebeu que a jovem a sua frente não era mais a mesma. O olhar antes infantil e quase sempre inseguro, agora transmitia uma sensação de segurança. Ele sabia que no fundo, aquela sensação era apenas um disfarce, um meio de esconder o sofrimento que passava.
 Não eram somente mudanças psicológicas, mas também físicas. O cabelo havia crescido e a pele adquirira um tom ainda mais pálido que antes. Enquanto era observada por ele escrevia um bilhete. Não iria alarmar a amiga, só avisá-la que decidiu ir embora. Ao termino da ação, dobrou o papel e o pousou sobre a cama de Júlia. A partir daquele momento sua vida começava a tomar um rumo diferente do esperado. E o que estava para descobrir mudaria a vida de muita gente, não apenas a dela.


O trajeto de volta parecia mais longo, mas ela sabia que era apenas uma impressão causada por sua inquietação. Seu estado de espirito havia mudado completamente, não sorria desde que deixara o quarto. Parecia concentrada, ou até mesmo preocupada olhando fixamente a estrada, mas na verdade não a enxergava.
Ayla queria apenas chegar a sua casa o mais depressa possível. Precisava encontrar os pais. Tinham tantas coisas para conversar. O que realmente a preocupava era a segurança da família, não sabia do Rendorf seria capaz agora que as circunstancias haviam sido modificadas. Mas sabia que estava disposta a fazer o que lhe fosse possível para defendê-los. Não temia perder a vida se fosse necessário. Estava pronta, decida.
Por um momento esses pensamentos a abandonaram. A sensação de segurança que ele lhe transmitia era aconchegante. Havia se passado tanto tempo desde que estivera naquele carro pela última vez. Tudo ali era familiar, o aroma amadeirado do perfume que exalava da pele de Dariel misturando-se ao cheiro do couro dos bancos. Era como se estivesse em casa e nada pudesse mais a atingir.
Dariel percebeu que algo a perturbava. Além do silêncio que mantinha a horas, uma de suas mãos estava agarrada ao banco. Nunca a vira daquela maneira desde que a conhecera. Segurou-lhe a mão, obrigando-a voltar sua atenção para ele.
Os olhos da moça pareciam estar fervilhando, como se fossem duas bolas de fogo verde que poderiam queimar a pele de mãos inexperientes que ousassem tocá-las.  Ao sentir o toque de seu amado enfim conseguiu relaxar. Sabia que podia confiar nele, mesmo que escondesse tantos segredos. Percebendo o olhar interrogativo de Dariel, suspirou baixando os olhos para suas mãos entrelaçadas. Esperara tanto para que aquele gesto voltasse a se repetir.
- Não se preocupe. – Falou por fim. A voz parecendo um sopro leve de uma brisa de verão. – Só estou pensando em tudo que aconteceu nesses últimos anos. – Mas era mentira. O que realmente estava em sua mente era poder ter uma oportunidade de encontrar Rendorf e vingar-se.
- Sei que não foi fácil, mas deve aceitar. Tudo o que acontece tem um motivo. Eu sei que você é uma pessoa que acredita nisso.
- Acredito sim. – Ela queria deixar esse assunto de lado. Era péssima para mentir, principalmente para Dariel. – Acha que podemos conversar agora?
- Claro. – Ele voltou a fitar a pista com um misto de inquietação e mistério tomando conta de sua expressão. – Não posso mais esconder isso de você. Será necessário para o que farei no futuro.
- Pois bem, comece então.
- Bom, quando nos conhecemos eu lhe disse que haveria momentos em que eu faria coisas que você não entenderia. – Ele fez uma pausa. Lançou lhe um olhar carinhoso. – Mas não fiz, eu me controlava para que você acreditasse que eu, realmente, fosse um ser humano comum.
- Desde que eu te vi sabia que isso era impossível. Você não tem as atitudes de uma pessoa qualquer. Por vezes age como se pudesse, ou até mesmo quisesse me proteger de algo que não conheço.  Mas resolvi guardar minhas dúvidas, pois todos acreditariam que estava louca.
- Você sabe o que eu sou? Quero dizer além da carcaça humanoide que carrego.
- Sim. Eu tinha dúvidas, que foram sanadas quando conheci Rendorf.
- Ele é um ser diferente de mim e de você. Por isso guardei seus passos desde o dia em que te deixei. Sabia que ele a atacaria. Mas acreditei que estaria em segurança, ali, em sua casa, porém vejo que estava enganado.
- Essa não foi a primeira vez que ele me atacou. No hotel... – as lembranças, agora, eram claras. – Naquela noite esteve em meu quarto, mas algo saiu errado. Lembro-me que perdi a consciência e ele não conseguiu concluir o que foi fazer.
- Eu lhe disse que existem coisas que você ainda precisa saber. Mas devem ser seus pais a te contar.
- Você não confiava em mim para me contar antes? Digo, sobre você.
- Não é isso. Ayla eu não tinha certeza do que estava procurando até encontrar você. Não podia lhe contar o que sou por simples cautela. Tudo precisava ser feito de maneira sutil até cumprir minha missão.
- Entendo, mas precisava perguntar. - Ela começava a juntar as peças. Tudo agora fazia sentido. Os pais escondiam o verdadeiro motivo do desaparecimento da irmã. Mas talvez fosse apenas uma maneira de protegê-la. Um pensamento não deixava sua mente: Rendorf estava metido nisso. Mas como poderia provar.

O Desaparecimento

Hadassa caminhava apressada pela rua iluminada pelas luzes dos postes. Tinha a impressão de que alguém a seguia e mais de perto do que o comum. Aterrorizada pela sensação, vasculhou a bolsa com as mãos tremulas em busca do telefone sem sucesso.  O medo a deixou incapaz de assimilar com clareza a situação em que se encontrava. A casa parecia estar cada vez mais longe. A rua cada vez mais comprida, como se afastasse a cada passo que dava. Ou como se ao invés de leva-la para a segurança do lar, simplesmente caminhava para a beira do precipício.
 De repente, no fim da rua, um homem apareceu. A aparência de alguém com elevado nível social. As roupas negras impecáveis pareciam fluir levemente a cada passo que dava. A menina sentiu o corpo estremecer, havia algo nele que despertava a sensação alerta permanente. A distância diminuía numa velocidade inimaginável. E a um passo de encostar seu corpo no dela, ele parou. Com um sorriso perverso ele estendeu a mão para tocar-lhe o rosto. Mas a morena se afastou rapidamente evitando o contato. A mente apavorada não conseguia raciocinar direito e não reconheceu imediatamente o rosto imerso na sombra formada pela aba do chapéu que usava.
     - O que quer de mim? Quem é você? – Mesmo apavorada a voz soou forte e confiante como ela costumava ser.
     - Não me reconhece. Não se lembra de mim.
     - Não. Nunca o vi antes. – Ela se afastou mais um passo. Estava se preparando para correr.
     - Ora, Hadassa. Como tem pouca memória. – Os olhos faiscaram ao retirar o chapéu e revelar sua face.
     E de repente tudo começou a fazer sentido. Ela o conhecia, sabia exatamente quem era e por que estava ali. E pior, sabia exatamente do que era capaz. O medo que sentia a pouco desapareceu. Uma confiança inigualável surgiu nos olhos da jovem. Os passos antes recuados agora eram traçados no sentido oposto. Firmes e cheios de certeza. Queria se aproximar dele o máximo possível. Queria tocar-lhe como fazia antes.
     - Rendorf. – Ela sorriu. – Por onde esteve? Não imaginava que ainda estava vivo.
     - Estive sempre aqui, guardando cada passo seu. Mas você não me procurou mais. Acredito que por medo de sua irmã.
     - Aquela sonsa. Não posso mais suportar viver naquela casa, a cada dia ela me irrita ainda mais. Não sei qual o plano dos arcanjos ao mandarem um anjo desmemoriado para tomar conta de mim, menos ainda porque escolheram Ayla.
     - Vejo que fiz bem em vir te procurar. – O sorriso se alargou de maneira ameaçadora e conclui: – Mas não se preocupe, Ayla sofrerá aquilo que merece. Em um futuro próximo. - Dizendo isso, ele tomou-a nos braços.
 Seguiram pelas sombras que ladeavam a rua. A partir daquele momento ela não voltaria para casa como já planejava fazer a muito tempo. Não retornaria enquanto não estivesse pronta para enfrentar aquela a quem odiava.

A Conversa

Ao abrir os olhos estava sozinha e uma brisa fresca entrava pela janela escancarada agitando as cortinas que a cobria. Na cama o único vestígio de que alguém estivera ali era o travesseiro amassado e o lençol remexido. Mas ela ainda podia sentir o perfume da pele de Dariel. Sem ter o que fazer ali, levantou-se.
     A imagem refletida no espelho tinha uma aparência abatida. Mesmo que estivesse sofrendo, não podia pensar em guardar rancor. Mas Rendorf teria de pagar pelo que fez. E seria logo. Naquele momento só uma coisa realmente importava: Precisava falar com os pais. Tirar a limpo aquilo tudo. Ter certeza de que não restava mais nada que não soubesse. Havia muitos segredos a serem revelados e deveriam ser esclarecidos, somente assim poderia saber como agir em relação ao traidor e poderia planejar com cuidado a vingança.
     A sala estava vazia, continuava como desde o primeiro dia em que a viu. O sofá em frente à televisão, os abajures ladeavam o ambiente, as cortinas haviam sido enroladas e amaradas para iluminar a sala de maneira natural. Mas vozes vinham da cozinha. Os pais sempre a ensinaram a encarar a vida com alegria. Mas desde que a irmã desaparecera não conseguiam sequer esconder o sofrimento atrás dos sorrisos que lhe davam. Mesmo que passe por um sofrimento difícil de suportar, o encararia como se fosse apenas mais um problema de difícil solução, mas que com um pouco de paciência seria logo superado.
 Ao entrar na cozinha, a mãe a recebeu com um abraço apertado, parecendo que já sabia o que ela iria fazer. O pai fez o mesmo. Mesmo que nunca desconfiasse deles, sabia que sempre esconderam algo. Estavam sempre falando baixo e parando quando ela chegava. Reunindo forças para enfrentar os progenitores pela primeira vez, olhou-os fixamente e diretamente perguntou por fim:
     - O que vocês escondem de mim?
     - Como? – Perguntou a mãe surpresa. – O que quer dizer com isso? Não lhe escodemos nada.
     - Eu sei que há algo que nunca contaram a nós. Algo que lhes fora incumbido. Mas eu preciso saber. E esse momento chegou.
     - Para que voltar a viver o passado? – O pai estava nervoso. Suas mãos trêmulas eram visíveis. – Decidimos que é melhor que vocês sigam as próprias vidas, sem interferência do que temos que fazer.
     - Não posso. É necessário que eu saiba o que houve no passado para que possa agir no futuro. – Ayla já não tinha esperança que eles contassem. – Preciso saber. Isso pode esclarecer o desaparecimento de Hadassa, e me ajudar a entender várias outras coisas pelas quais venho passando.
     - Você não entende que é melhor não tocarmos nesse assunto. Que é melhor deixarmos tudo como está. Não é bom que fiquemos revirando o passado. - Bradou o pai.
     - Se não querem me contar, tudo bem. Mas saibam que vou descobrir. Eu preciso saber de tudo. Isso é necessário para que possa entender o que houve com Hadassa. Para que eu possa compreender o que eu sou de verdade.
     - Tudo bem, filha.  – A mãe olhou para o marido. – Ela tem esse direito, querido.
     - Pois bem, comecem.
     - Reneguei minha origem quando conheci sua mãe. Queria levar uma vida normal e tranquila ao lado de vocês. Para que vocês não corressem os mesmos riscos que eu corria quando mais jovem. Mas percebi que isso seria impossível quando vocês duas nasceram. Vocês não eram exatamente como imaginei que seriam e despertaram a curiosidade deles. – Ele fez uma pausa. Olhou para a mulher e depois fitou as mãos. – Como você mesma já deve ter notado, eles enviaram alguém atrás de vocês. Alguém para cuidar de vocês. Para que eles tivessem certeza de que cada uma seguiria um caminho.
     - Sim, já notei. Dariel e Rendorf. Mas o segundo é um traidor.
     - Não. Ele nunca foi um traidor. Ele é um anjo caído. - Comentou a mãe.
     - Sim. Ele tem a missão de levar vocês para as profundezas para que lutem ao lado de Lúcifer. Mas você sempre teve a bondade em seu coração desde o primeiro instante em que veio ao mundo. Por isso Dariel foi enviado. Ele é seu guardião. Tem a missão de evitar que algo lhe aconteça e, principalmente, de manter Rendorf longe.
     - Vocês estão me dizendo que sou um anjo? – Ela os olhou sem poder acreditar no que diziam.
     - Sim. Mas também é humana. Você e Hadassa são muito poderosas. Por isso te peço. Fique ao lado de Dariel. Rendorf apenas quer perder sua alma, corrompê-la assim como fez com sua irmã.
     Naquele momento o ódio que sentia por aquele traidor aumentou. Ele havia levado sua irmã. Não podia e não iria aceitar algo assim. Estava decidida a enfrentá-lo, mesmo que para isso precisasse mentir para Dariel. Não sabia como faria isso, mas tentaria de todas as formas possíveis encontrar aquele por quem nutria uma espécie de amargura por tudo o que lhe causara. Agora sabia do que Rendorf era capaz e não o temia.


     A noite caiu. A lua e as estrelas cuidavam da iluminação do quarto entrando através da janela aberta. A jovem não se sentia bem. Estava sonolenta. Subiu para o quarto após o jantar.  Sem poder controlar o que sentia, deitou-se e logo estava mergulhada em seus sonhos. Rendorf havia planejado tudo. Agora ela já conhecia sua verdadeira história. Estava na hora. O momento de enfrentar Hadassa chegara. Ela conhecia a história que ele queria que conhecesse, mas não estava preparada para derrotar a sua protegida. Mas para isso precisava tirá-la dali antes que os pais, ou Dariel percebessem.
A linda morena adormecida tinha a expressão serena. Nada parecia poder abalá-la emocionalmente. Tomando-a nos braços, deixou que uma chama brotasse de sua palma. Iniciou-se assim um incêndio. O pretexto perfeito para tirar todos dali, com o alvoroço provocado pelas labaredas poderia sair da casa sem ser notado levando Ayla consigo.

O Reencontro

Ao abrir os olhos, Ayla incomodou-se com a claridade. A luz do sol incidia diretamente sobre seu rosto. O dia começava a nascer e reservava uma grande surpresa para a jovem. Levantou-se, meio cambaleante, sem saber onde estava. Ainda trajava o moletom com que adormecera na noite anterior. Uma dor na nunca a abespinhava.
  Os olhos se acostumaram à luminosidade, permitindo-a distinguir os objetos que a cercavam. Estava rodeada por uma imensa e densa floresta. Uma casa de alvenaria com estilo de chalé se apresentava a sua frente. Nunca estivera ali antes, pelo menos não que se recordasse. Mas era como se conhecesse aquele lugar. O céu estava encoberto por nuvens cinzentas. Mas isso não incomodava, sempre gostara da chuva. Sentia-se mais segura e, até mesmo mais forte quando estava em contato com a água.
 Encostada em um armário de madeira que servia como deposito de matérias na varanda, Hadassa observava em silêncio a recuperação da irmã. Parecia estar se divertindo com o estado em que a jovem se encontrava, perdida e confusa. Sem saber exatamente o que fazer. O que raramente acontecia. Sempre quisera vê-la daquela maneira. Ela sabia a verdade. E sempre detestara Ayla.
  - Já estava na hora de acordar, irmãzinha. O sol já está no alto. – Disse em tom irônico. – Não está diferente desde a última vez que nos vimos. Continua igualzinha.
- Hadassa? O que faz aqui? Onde estou?
- Na varanda da minha casa. Bom, vejo que vou ter de lhe ensinar várias coisas. Continua a mesma sonsa.
- Por que estou aqui? – Ela olhou ao redor, mas encontrou apenas a floresta que cercava a casa.
- Não parece óbvio? Você está aqui porque eu quis assim.
- Por que não voltou para casa então? Nossos pais estão preocupados com você.
- Você é mesmo ingênua ou só está tentando me irritar? Não vou voltar para casa. Será que ainda não percebeu que estou aqui porque quero estar? Não vê que desapareci, pois achei melhor assim?
- Você não é mesma, Hadassa. Não a reconheço. O que houve para que isso acontecesse com você?
- Chega de bancar a boazinha. Sai de casa pelo simples fato de estar cansada de ter você monitorando minha vida o tempo todo. Não suportava mais ouvir ninguém dizendo o que podia ou não fazer. Estavam sempre me comparando a perfeita Ayla. Aquela que sempre age de maneira correta.
Rendorf apareceu. Trajando as mesmas roupas elegantes que costumava usar, saiu das sombras, posicionando-se ao lado da morena macabra. O rosto estava iluminado por um sorriso maquiavélico. Um misto de êxtase e excitação. Os olhos negros buscaram os de Ayla. As duas jovens eram muito parecidas, tanto na beleza como na maneira arrogante de se portar. A única diferença era que Ayla era inocente por ainda desconhecer a verdade. Isso lhe dava um ar de mistério que fascinava quem a visse.
Mesmo que Rendorf fosse apaixonado por Hadassa, a morena a sua frente o atraia fortemente. Era uma atração física que sempre o levava a agir impulsivamente. Entendia bem porque seu guardião havia se apaixonado por ela. Mas abandonou esses pensamentos. Nada poderia sair de seu controle agora. Não era isso que queria. Não treinara Hadassa para se entregar a um sentimento humano.
- O que acha de nossa casa? Não é aconchegante?
- Para aqueles que adoram as trevas é perfeita. – Ela retrucou. – cada vez que o conheço mais, meu desprezo e meu ódio por você só fazem aumentar. Traidor.
- Traidor? Eu? – Ele gargalhou como se o que a jovem havia dito fosse uma piada. – O verdadeiro traidor esteve sempre ao seu lado. Dariel.
- Ele nunca me traiu. Sempre foi honesto e sincero comigo.
- Por isso ele a deixou daquela maneira? Ou já esqueceu o quanto sofreu por seu afastamento?
- Não. Isso é impossível de se esquecer. Querendo ou não, revivo as lembranças todos os dias. Mas sei a verdade. Conheço o real motivo para o nosso rompimento. Você. Sempre o ameaçara. Dizia que podia acabar comigo. Bom isso é o que veremos.
- Está me desafiando, menina? – A voz era ameaçadora, assim como sua expressão.
- Entenda como quiser. – Ela não se deixou intimidar.
- Você acabou de conhecer o que realmente é. – disse rindo. – Acredita mesmo que pode me desafiar, não sabe nem por onde começar.
A última frase a surpreendeu. Era verdade, ela realmente não sabia o que fazer, não sabia como agir, mas não demonstraria isso a eles. Não agora. Não no momento em que podia acabar com a vida dele. E contava com a ajuda da irmã. Pelo menos acreditava nisso.
- Vamos pequena, - a voz mudara de tom. Estava mais amável. – Posso lhe tornar uma excelente guerreira, assim como tornei Hadassa.
A resposta veio de trás da menina. Mesmo sem olhar ela sabia perfeitamente de quem se tratava. A voz soou mais grave do que de costume, até um pouco mais ameaçadora. Era seu guardião, aquele que jamais deixaria que algo lhe acontecesse.
- Ela não precisa de sua ajuda, Rendorf. – Dariel se aproximava. – Se Hadassa acreditou em suas promessas, o único motivo que vejo é que sua alma já estava perdida. Nunca aceitou ter alguém igual a ela, uma irmã gêmea.
- Mentira. – Bradou Hadassa. – Era Ayla quem não queria ter uma irmã gêmea. Sempre aceitei esse fato muito bem.
- Eu sempre te adorei, minha irmã. Para mim você era o exemplo de pessoa que seguia. Mas vejo que me enganei com você.
- Como sempre se fazendo passar por vítima, não é?
Rendorf se intrometeu. Colocou-se à frente da protegida. Não era o momento para que as duas se enfrentassem. Precisava antes se livrar de Dariel, pois ele daria a vida para defender o anjo que protegia. Fora escolhido para essa missão. E não descansaria enquanto não corrompesse a alma daquela jovem mulher.
- Vamos conversar amistosamente. – Lançou um olhar ameaçador para Hadassa. – Estamos entre amigos e, irmãs.
Ayla abraçou Dariel se esquecendo de onde estava. Seus braços se fecharam ao redor do pescoço do amado. As mãos trêmulas deixavam transparecer o medo que sentia. Era nítido seu estado de impotência diante da situação que se apresentava, parecendo sem solução. Sabia que era poderosa, mas como demonstrar isso sem saber do que é capaz de fazer?
- Fique calma, vou tirar você daqui. – A voz amável e aconchegante buscando tranquiliza-la.
- Antes preciso fazer uma coisa. Peço que me entenda.
- Não estou gostando de seu tom.
- Quero que saiba que o amo. Mas não posso deixar isso sem uma punição. – Os olhos verdes lagrimejaram. – Preciso fazer isso por mim, por ela e por meus pais.
Ele sabia o que a jovem estava tentando dizer. Ela estava disposta a se sacrificar por todos, mas existiam pessoas ali que não mereciam isso e ele sabia disso. Mesmo que concordasse para satisfazer seu desejo, não deixaria que isso acontecesse. Se alguém fosse perder a vida ali, seria ele.

Primeira Vez

Em uma mesa, na cantina do campus da faculdade onde estudava, Ayla esperava sua amiga Júlia. Não tinha animo para nada. Suas amigas queriam levá-la para festa de aniversário do garoto mais popular da faculdade. Mas ela estava triste. Sua irmã desaparecera. A única pessoa com quem podia conversar abertamente. Tudo ao seu redor parecia ter perdido a graça. Nada a fazia sorrir. E quando sorria era simplesmente falsidade.
Mesmo com a aparência abatida, Ayla chamava a atenção por sua beleza. Os longos cabelos negros caiam encaracolados sobre os ombros contrastando com pele pálida que parecia cada vez mais branca. Os olhos verdes brilhavam. Mas não era de felicidade, e sim de tristeza. Estava difícil conter as emoções ultimamente.
Júlia voltou ao encontro de sua amiga. Sentou-se de frente para ela. Os olhos azuis da loura a fitavam tentando dar apoio. Mas sabia que era uma atitude vã. Ela não se recuperaria facilmente e tudo o que desejava era poder solucionar os problemas da família. Tocou-lhe a mão e recebeu um sorriso tristonho de volta.
- Então? - Começou para tentar distraí-la. – Decidiu se vai comigo?
- Creio que não. Você sabe que não tenho animo para isso. Pelo menos não tão já.
- Minha amiga, eu sei que você está sofrendo, mas precisa tentar se conformar. Sua irmã vai voltar, e sabe disso.
- Eu sei, mas meus pais estão desiludidos. Acreditam que não há esperanças de que a encontrem, muito menos com vida.
- Mostre que a Ayla ainda está aí, sempre feliz e animada. Pronta para ajudar a todos. Você precisa se distrair.
- Esse é o problema. Não quero. Não tenho vontade nem de vir mais para faculdade. Quero ficar trancada no meu quarto, sozinha.
- Eu não vou deixar isso acontecer. Está decidido, você vai comigo e pronto. Estamos precisando rir.
- Tudo bem. Mas não conte que vou ficar até tarde.
- Já é um começo. – Ela sorriu.


A semana passou. A jovem não conseguia esquecer. Quanto mais os dias passavam, mais a dor aumentava. Era fim de semana. O dia da tal festa. Mesmo desanimada estava se arrumando para ir. Sabia que a amiga queria ajudar, mas não conseguia aceitar. Não poderia se divertir sem a irmã ao seu lado. Olhou-se uma última vez no espelho. Estava pronta. Não se sentia bonita, muito menos feliz.
Ao adentrar a sala encontrou Júlia, mas não estava sozinha. Acompanhada por dois rapazes. Ela logo entendeu. Eram seus acompanhantes. Os conhecia da faculdade, mas não conversava com eles. Júlia sorria. Estava estonteante.
- Ayla, você está linda. – Comentou.
- Obrigada. – Foi tudo o que disse.
Um dos rapazes estendeu a mão para ela. Relutante a pegou. Mas não lhe despertava nenhum sentimento, era como se tivesse ficado vazia. Tudo com que sonhava naquele momento era poder reencontrar a irmã e conhecer alguém a que realmente amasse.
- Bom, vamos. Antes que eu desista. – Alertou ela.
Ambos assentiram. Ela estava saindo, mas o coração continuava apertado. Queria tanto poder estar saindo com irmã. Assim como costumavam fazer desde que eram pequenas.
A festa estava animada. Totalmente o contrário do estado de espirito da jovem. Cada passo que dava na direção da casa sentia o coração acelerar. Não estava pronta para enfrentar todos aqueles olhares. Mas seguiu em frente de cabeça erguida com a sua costumeira altivez. Foram recebidos pelo anfitrião da festa. Um jovem de vinte e poucos anos, cabelos bem aparados e penteados, olhos castanhos, trajava jeans e camiseta. Tudo bem informal. Tinha um largo sorriso nos lábios.
- Entrem. – Convidou. – Achei que vocês não viriam.
- Como pode pensar isso. – Brincou um dos rapazes que as acompanhavam. – Não poderíamos deixar de lhe desejar os parabéns.
Ayla apenas sorriu. Não queria conversar com ninguém. Não sabia por que aceitara o convite da amiga. Estava deprimida. Ali suas emoções estavam mais difíceis de controlar do que de costume. Teria que se segurar muito para que não chorasse na frente dos outros.
Não ficou por muito tempo no salão. Uma angustia tremenda a sufocava. Saiu para o jardim. Encontrou uma mureta e se recostou nela. A brisa levantou seus cabelos como se acariciassem. As lagrimas rolaram. Sabia que os pais não suportariam por muito tempo.  O casamento já estava desgastado. E ela sabia que se continuassem juntos seria apenas para dar lhe esperanças.
De longe um rapaz a observava. Queria entender o que estava acontecendo. Os olhos verdes fitavam cada movimento realizado por ela. Sem saber quem era e por que chorava se aproximou. A jovem o fitou secando as lagrimas. Tentou forçar um sorriso, mas fracassou. A tristeza a abatia. Mas algo no rosto daquele jovem transmitia paz. Ele encontrou seu olhar, e mesmo que quisesse era incapaz de desviá-lo. Mas não queria, preferia ficar ali paralisada. Ele estendeu a mão para tocar-lhe o rosto, esperava que a menina recuasse. Mas o contrário aconteceu, Ayla ficou parada. Esperava ansiosa por aquele toque, como se a própria vida dependesse exclusivamente dele.
Pode-se descrever a paixão de diversas formas. Cada um tem sua maneira de demonstrar, ou não, o quão especial alguém é para ela. Mas há algo que se repete com todos aqueles que se veem numa situação assim: a pessoa fica boba, não sabe o que dizer, as mãos trêmulas transpiram, as pernas ficam bambas. E tudo o que se deseja é encontrar aquele que lhe desperta algo assim. Ayla, naquele momento, sentia tudo isso. Não sabia como agir. Ninguém nunca havia despertado tais reações nela.
- Posso ajudá-la? - Perguntou a voz suave. Os olhos sempre procuravam os dela.
- Estou bem, obrigada.
- Não parece. Estava chorando.
- Problemas pessoais. – Ela respirou fundo. – Não se preocupe comigo, ficarei bem. Volte para festa. – Mas não era isso que ela queria.
- Não, ficarei aqui. Fazendo-lhe companhia, é claro se me permitir.
- Não faço objeção. 
Ambos ficaram em silencio. Não precisavam dizer nada, o silêncio preenchia todas as lacunas que pudessem surgir entre eles de uma maneira agradável. Bastava estar um ao lado do outro que tudo parecia estar bem. Aquela seria a primeira vez de muitas outras que estariam por vir.

Batalha de Titãs

Os dedos de Dariel estavam entrelaçados aos de Ayla, mantendo-os unidos. Podia sentir a tensão que percorria seu corpo como uma corrente elétrica. Ela estava calada há tempo demais. Isso não era um bom sinal. Seus olhos estavam fixos em Rendorf, provavelmente pensando no que poderia fazer.
Seus pais haviam lhe contado a verdade, pelo menos ela acreditava nisso, mas não o que ela precisava saber para enfrentar aquele nefasto. Não sabia o que era capaz de fazer, mas não se entregaria como fez sua irmã. Resistiria enquanto houvesse forças para isso e mesmo que elas se esgotassem.
- Juntem-se a nós. Vamos almoçar. – Convidou ironicamente Rendorf.
- Não. – Ela respondeu rispidamente. – Com vocês não iremos a lugar algum.
- Ora, a garotinha indefesa está crescendo. – Ele gargalhou. – Tu não tens escolha, querida. Sou eu quem dá as ordens por aqui.
- Você não me dará ordem alguma. Não sou e nunca serei alguém que pode controlar. Se Hadassa escolheu ficar do seu lado, não espere que eu faça o mesmo. – Dariel segurou sua mão firmemente. – Não acredite que me vencerá, pois sei o que posso fazer. – Era mentira.
- Veremos então. – Hadassa caminhou até o centro. Diminuindo a distância pela metade. Olhou-a nos olhos. – Quero ver do que é capaz querida irmã.
Ayla avançou um passo, mas ele a impediu. Mantendo as mãos juntas, não podia permitir que ela fizesse aquilo. Era loucura, a jovem estava se lançando em uma aventura sem saber se poderia arcar com as consequências dela. Sabia que ela não fazia ideia de como agir. Não suportaria sequer um ataque de Hadassa, muito menos se Rendorf decidisse interferir. Ao olhá-lo nos olhos, proferiu uma única suplica.
- Preciso fazer isso, confie em mim.
Uma batalha de titãs tinha início ali. Hadassa, desde que deixara a família para trás vinha treinando para esse momento. Tinha desenvolvido seus dons como uma facilidade incrível. Era capaz de enfrentar até mesmo o Arcanjo do Fogo.
E sabia que Ayla, sem memória e despreparada, não era páreo para ela. Afinal não se lembrava de nada. Não se lembrava da sua verdadeira vida. Com um sorriso nos lábios viu as mãos se inflamarem em labaredas, por um momento contemplou as chamas que pareciam dançar em sua pele macia. Lançou-a contra a oponente sem piedade, queria vê-la queimando, ardendo. Por reflexo, Ayla cobriu o rosto com os braços e o inesperado aconteceu.

Fogo contra Gelo

Uma parede espessa de gelo se formou a sua frente. Uma barreira indestrutível. As chamas apenas deixaram pequenos orifícios na muralha que os protegia. Ayla baixou os braços e fitou a irmã. Hadassa estava incrédula. Não conseguia acreditar que ela pudesse reagir daquela maneira. Era impossível. Não aceitava. Treinara durante dois anos para quando esse momento chegasse, a consanguínea não tivesse como escapar ou sequer reagir a um simples ataque seu. Olhou para Rendorf buscando apoio. Mas ele apenas fez um sinal para que continuasse.
Dariel se aproximou da protegida. Estava diante de um dos mais poderosos seres celestiais já conhecidos. Era mais fraca apenas que os Arcanjos. Mas ela não sabia como usar seus dons, pois não os empregara até aquele momento. Se se fizesse necessário, ele daria apoio a ela.
A menina o olhou. Os olhos haviam assumido um tom branco, duas pedras de gelo ocupavam o lugar das esmeraldas brutas. O olhar antes ingênuo agora era confiante. A pele já pálida, estava quase translucida. Ela reconhecia Dariel. Mas não permitiu que a tocasse novamente. Estava pronta, podia sentir. Experimentava uma sensação que nunca tivera antes. Sentia-se forte, inabalável. Sua atenção se voltou para Rendorf. Um olhar frio e sombrio encontrou o dele. A voz soou forte e autoritária.
- Não é contra ela que devo lutar. – Gesticulou para que ele se aproximasse. A divisória se desfez. – É para você que guardei o meu ódio.
- Nunca, - gritou Hadassa. A voz demonstrando que estava desesperada. Não entendia como ela poderia ter recuperado os poderes tão rapidamente. – Você nunca o tocará. - Estava visivelmente abalada.
O anjo de gelo simplesmente sorriu. Os lábios se formando uma linha ameaçadora em seu rosto. Não daria mais atenção à irmã mimada. Pôs-se a caminhar na direção do anjo caído. Sob seus pés, formavam-se pegadas de uma fina camada de neve a cada passo que dava.
Rendorf parecia aterrorizado. Não conseguia compreender o que acontecia. Não era possível. O anjo de fogo sempre exerceu o controle sobre seu oposto. Hadassa havia sido corrompida. Recebera treinamento para derrotar facilmente a irmã. Mas não era isso que acontecia a sua frente. Mas a maior surpresa ainda estava por vir.

A Decepção

Naquela tarde, Dariel estava pronto para ir à casa de Ayla. Tudo começava a seguir seu rumo, mas ainda existia a missão que fora designado, precisava encontrar a Ishin do Gelo e retornar para o Castelo. Havia a deixado de lado por algum tempo, desde conhecera a jovem menina, o que lhe causou um breve atraso. Mas o que o ligava a Ayla era algo inexplicável, nunca havia se sentido daquela maneira. Estava realmente apaixonado.
Ao estacionar o Mustang na esquina alguém bateu no vidro. Ele o baixou para dar atenção a quem o chamava. Surpreendeu-se ao encontrar um dos anjos caídos. Saiu do carro e o fitou de frente com a expressão séria e altiva.
- O que quer? – Perguntou de maneira amigável.
- Você sabe o que quero. Está com ela e precisa deixá-la.
- Está falando de Ayla?
- Sim. – Não poderia dar mais informações, caso contrário o anjo saberia que sua missão estava cumprida antes do que pensava. – Deve deixá-la. Eu sei onde e quando vai encontrá-la. Posso muito bem armar uma armadilha.
- Fique longe dela. Ela não teve culpa do que aconteceu com a sua amada.
- Não? – Estava se saindo melhor que esperava. – Por que acha que Hadassa desapareceria então?
- Não sei. Não posso acreditar que ela tenha culpa. Mas não permitirei que encoste um só dedo nela.
- Não encostarei. Basta que se afaste dela.
- Não posso fazer isso. Eu a amo. Não poderia fazer com que sofra.
- Melhor que sofra agora. Não acha que viva ela poderá se refazer da decepção. – Dizendo isso desapareceu.
O jovem anjo sabia que não poderia desafiar aquela entidade funesta, era traiçoeiro e não possuía nem um tipo de escrúpulo. Não o conhecia, mas como todos os anjos caídos que conhecia, aquele havia se juntado as ordens luciferianas, requeria cuidados especiais quanto a jovem. Ao adentrar a casa de Ayla, já havia planejado tudo. Ela veio ao seu encontro com o sorriso meigo. Sentiu um nó na garganta, abraçou-a com força. Queria sentir sua pele pela última vez.
Os dois caminharam para fora. Sentaram-se nos lugares de sempre. Enquanto observavam a chuva caindo, ela tentou beija-lo, mas ele não permitiu. Não estava preparado para beija-la e depois dizer que a estava deixando. Ayla o olhou por um longo instante e desviou o olhar para a chuva.
- O que aconteceu? – Perguntou com a voz carinhosa.
- Precisamos conversar. – Tentando ao máximo disfarçar a voz embargada.
- Sobre o que? Fiz algo errado?
Ele fitou os olhos verdes um tom mais escuro que esmeralda. Estavam curiosos. Buscando respostas. Tentando entender se fora ela a culpada por aquela conversa.
- Não. Você não fez nada errado. – Não sabia como dizer aquilo. E acabou usando uma frase comum dos seres humanos. – O problema sou eu.
- Como? – Ela parecia confusa. – Está tentando terminar comigo?
- Eu, - ele baixou o rosto. – Estou.
- Por quê?
- Não quero ninguém que me deixe preso. – Matinha a voz firme com muito esforço. – Foi bom enquanto durou, mas acabou. Cansei-me desse seu jeito meigo, você é infantil.
Mesmo tentando parecer forte, as lagrimas começaram a rolar por seu rosto. Não podia acreditar que o homem que amava estava falando daquela maneira dela. Sentia em cada toque seu que também a amava. Não conseguia aceitar perdê-lo.
- Não, você não está falando a verdade. Sinto que me ama. – Tocou o rosto do jovem. – Sei que ama. Posso ver em seus olhos.
- Está enganada. Confundi os sentimentos ao nos conhecermos. Você é apenas mais uma menina na minha vida. – Não podia mais enganar nem a si mesmo.
Ele a deixou ali, sentada onde costumavam passar inúmeras horas por dia, sem dar mais explicações. Entrando no carro, não conteve as lagrimas. Ouvia a jovem gritando seu nome, impedida de ir ao seu encontro por seus pais. A dor que o assolara era insuportável, nunca experimentara isso antes. Reunindo forças, arrancou com o carro cantando pneus. 

Face a Face

Hadassa não deixaria que a irmã que sempre odiara matasse o amado. Se concentrando, conjurou seus dons novamente. Das mãos unidas surgiram imensas labaredas. Lançou-as na direção de Ayla, mas não contava com a chuva que começava a cair. O anjo de gelo nem ao menos desviou o olhar de seu alvo principal. O anjo caído que estava a poucos metros agora. Caminhava confiante guiada pela neve. Os olhos do anjo caído o traiam. Deixando transparecer o horror que sentia. Sua morte estava próxima. E ela não teria pena. Tudo que sofrera na vida por culpa daquele homem retornavam agora a sua mente.
Sentiu uma energia invisível protegendo-a. Sabia exatamente de onde vinha. Era Dariel. Cuidava dela, mesmo que soubesse que não precisava. Mas agradecia que a amasse daquela maneira. Parou a poucos centímetros de sua face, sem tirar os olhos dos de Rendorf. O cenho se asseverou.
- Onde está a sua coragem? Onde está a arrogância que sempre sustentara, anjo caído? – As mãos congelaram.
- Afaste-se de mim. Posso matá-la sem que perceba. – Mais a voz estava trêmula.
- Não. Sabe que não pode. Caso contrário já o teria feito.
- Afaste-se. Não repetirei novamente.
- Vamos mostre do que é capaz. Agora que estamos aqui, face a face. – Desafiou.
Perante o desafio, Rendorf não se conteve. Sua arrogância era maior que sua capacidade de raciocínio e mesmo sabendo que não tinha chance de vencê-la decidiu que ia enfrenta-la. Reuniu toda a energia agourenta que possuía e desferiu um golpe potente contra o peito da celestial.
Ayla atravessou, arremessada, o terreno sob a chuva que se tornou mais forte, batendo de costas em uma árvore. A árvore quebrou exatamente no meio no momento da pancada que recebera. Assistindo a cena, o anjo tentou aumentar a aura de proteção que a envolvia, mas foi inútil.
Gargalhando, o demônio acreditava poder vencer o anjo de gelo facilmente naquele momento. Mas não contava com o ataque surpresa. Das mãos congeladas duas laminas de gelo partiram na sua direção. Afiadas, atravessaram a carcaça e o sangue jorrou. Tentando se recuperar lançou outra onda de energia que não a acertou.
O anjo de fogo que observava a tudo tentou reagir. Mas suas chamas foram neutralizadas pela água da chuva que sua irmã produzia. Correu então, não direção do anjo guardião. Era mais forte que ele. Mas não contava com um pequeno empecilho. Ayla congelou seus pés. E sorrindo caminhou até o anjo caído.
- Eu o avisei. Disse para que não me provocasse. Você é a fonte de todo meu ódio. Por você fui obrigada a deixar aquele que amo. Está será sua recompensa. – Outra lamina surgiu de sua mão. Olhando-o de cima cravou a placa solida em seu peito transpassando seu coração. – Aqui, acaba sua vida de crueldades. – Caindo a seus pés, o demônio desfaleceu.
Ela se afastou do cadáver já sem vida. O corpo tremia demonstrado o estresse a que fora submetido. Estava exausta. O esforço havia sido demais. E a pancada que recebera a deixara abalada fisicamente. Já sem forças desabou assim como a irmã. Havia terminado. Dariel correu ao seu encontro. Tomou-a nos braços. A expressão serena, os olhos assumindo novamente o tom esverdeado e um sorriso que moldava seus lábios eram os sinais de que tudo voltara ao normal.
- Cumpra sua missão. – O sangue manchou os lábios rosados. – Tudo acabou. Estou pronta.
Ele a obedeceu. Caminhou sob as gotas de água. Isso a ajudaria a se fortalecer. Era um anjo de gelo, mas também podia controlar a agua. Afinal era derivado desse elemento. Ambos estavam encharcados.
 Olhou pela última vez para a jovem morena que jazia inconsciente sobre o gramado. Talvez não voltasse a vê-la. Mas duvidava que isso acontecesse, Hadassa não descansaria enquanto não acabasse de uma vez por todas com Ayla.

Despedida do Palácio Celeste

Era difícil olhar para aquela decoração sem se encantar. O palácio tinha dimensões descomunais, paredes revestidas de ouro, esculturas em tamanho real dos patronos adornavam o salão central. A sensação de quem o adentrava, ou mesmo olhava de fora, era de plena superioridade. O castelo fora construído para dar essa ideia a quem o visse, pois os que o habitavam tinha a superioridade incrustada em suas personalidades. A menina não se cansava de observar o jardim. Lindas flores cresciam ali. As mais belas que foram possíveis encontrar de todos os lugares onde já vivera. Plantas para ela.
Do outro lado do vestíbulo, quatro homens a observavam. Trajando uma túnica de seda branca. Sua beleza chamava atenção. Os longos cabelos castanhos caiam pelas costas formando cachos contrastando com a cor de areia de suas asas. Os olhos verdes e a pele clara contrastavam com a cor do cabelo. O mais jovem a chamou:
- Ayla? – A voz era melodiosa e suave assim como a expressão.
- Sim. – Virou-se para fitar aquele que a chamara. – Em que posso ajudá-lo, senhor? – Perguntou usando um tom mais formal.
- Precisamos conversar. – Levantou-se e estendeu a mão para a jovem. – Vamos?
- Claro. – Os olhos encontraram os dele.
Enquanto se afastavam dos outros, o silencio os acompanhavam. Não eram necessárias palavras para que se entendessem. O sentimento que os envolvia era algo muito maior que um sentimento carnal. O jardim estava próximo, o aroma das flores era o indicio. Ele resolveu parar antes de pisarem no gramado. Sentaram-se em um dos bancos de bronze que decoravam o jardim.
- O que queria dizer-me? – Ali não precisavam esconder os verdadeiros sentimentos.
- Meus irmãos querem que você saia em outra missão. – A voz caiu uma oitava. – Mas acredito que é arriscado.
- Tudo oferece riscos, Quinto Arcanjo. Não podemos nos omitir. Sabe que nascemos para isso. E tenho o melhor mestre de todos. – Sorriu ao tocar-lhe o rosto. – O que devo fazer?
- Eles lhe dirão em breve. Mas preciso alertá-la dos riscos que estará correndo. Não só fisicamente.
- Não tema por mim. Voltarei sã e salva como de tantas outras vezes. Não há motivos para preocupações.
- Há sim. Inúmeros motivos. – Envolveu o corpo delicado com o braço. – Você não se lembrara de mim, nem do palácio. Não saberá quem é. E aqueles que serão responsáveis por cuidar de você serão orientados a mentir para lhe proteger.
- A única coisa que realmente lamento é não poder ao menos guardar sua lembrança. Mas não posso me queixar, sou apenas uma peça no tabuleiro. Não posso escolher o que fazer, pelo contrário, devo obedecer às ordens que recebo de vocês.
- Sei disso. – Com o indicador levantou seu rosto para que olhasse para ele. – Prometo que quando retornar tudo será diferente. Não vamos esconder o que sentimos um pelo outro.
- Ainda acredita que eles não percebem. Não somos muito bons para disfarçar nossos sentimentos. – Sorriu. – Por que lhe pediriam para vir falar comigo se não soubessem?
- Sou o mais apropriado para essas tarefas. – Ele sorriu. – Não é a primeira que me mandam convencer um anjo a ir sem reclamar.
- Como se nós, os anjos inferiores, pudéssemos reclamar. – Olhou em seus olhos. – Eu irei. E prometo que voltarei para você. Mesmo que minha memória seja apagada me lembrarei do que sinto. Sempre estarei disposta a lutar para defender a sua vida.
- Admiro sua coragem Anjo de Gelo. Sei que se sacrificaria por mim. Mas peço que não o faça.
- Acato seu pedido. – Um querubim viera até ali para chamá-la. A sua presença a perturbava. Era difícil olhar aquele homem. – Acho que preciso me apresentar perante os generais.
Ele assentiu. Não queria admitir que ela fosse. Sabia que a perderia. Mas não era o momento para egoísmos. Levantou-se primeiro e caminhou para dentro ao encontro dos consanguíneos.
O querubim se aproximou da jovem. Mesmo que quisesse, não era possível se sentir bem ao lado daquele homem. Dele emanava uma energia ruim, que Ayla não sabia explicar. Caminhou escoltada pelo anjo sinistro. Estava novamente perante aos seus comandantes. Não pode deixar de notar o olhar triste e angustiado que o Quinto Arcanjo lhe lançava.
- Aqui estou meus senhores. – Se ajoelhou em reverencia. – Em que posso ser útil?
- Como sabe Ayla, você é uma de nossas mais poderosas agentes. – O Príncipe dos anjos falava pausadamente. – Após ponderarmos, decidimos que é a mais capacitada para o empecilho que temos pela frente. Você encontrará um dos anjos caídos. Deve enfrentá-lo em um embate que deixara apenas um sobrevivente.
Agora ela compreendia o que Raphael queria dizer. Mas não podia recusar a incumbência. Tudo ali era decido de antemão, e só o que estavam fazendo era comunicar-lhe que partiria dentro em breve.
- Sim, Arcanjo. Estarei pronta para partir quando ordenar.
- Irá assim que o sol nascer. Deve descansar. – Fez um gesto para que se retirasse.
Sem olhar para nenhum dos outros capitães, se retirou da nave dos tronos. Não queria deixá-lo preocupado, mas após o discurso que o poderoso Arcanjo proferira, ficara realmente preocupada. Nesse momento sentiu que poderia perdê-lo. Mas deixou esse pensamento de lado. Foi para o seu quarto. Como dissera o general era preciso descansar.


A noite chegara. A luz do luar invadia seu quarto. Esse era um momento que apreciava. E como costumava fazer, a moça banhou-se na banheira escavada na pedra de mármore. A água a ajudava a relaxar. Cobriu o corpo com uma túnica de seda mais seda do que a que trajava mais cedo.
Não estava cansada, mas sim ansiosa. As palavras de Miguel não abandonavam seus pensamentos. Sentou-se sobre as pernas na cama, fechou os olhos e se concentrou na respiração. Deixou a mente vagar sem se prender a nada.
O Quinto arcanjo entrou no aposento reservado ao Anjo de Gelo. Encontrou-a meditando. Sempre que fazia isso era porque estava preocupada. Ele sabia que esse era o efeito da oratória do irmão. Sem chamar sua atenção, sentou-se junto a ela no leito. Acariciou seus cabelos delicadamente. Estavam molhados pelo banho que acabara de tomar. Aquela seria sua despedida do palácio celeste.
Ayla abriu os olhos lentamente. Olhou-o com um sorriso sincero nos lábios. Estava feliz que ele viera. Não queria ir até o seu quarto. Não sabia se o encontraria sozinho. Sem esconder o que sentia, abraçou-lhe o pescoço. Suas emoções estavam irreprimíveis. Mas notou que não eram somente as suas.
- Não quero que vá. Mas sei que não posso impedir. – Ele acariciava o rosto da menina. – Antes que parta quero lhe dizer que a amo. Hoje reconheço que não somos tão diferentes um do outro. Você só me trouxe o que aprendeu com a criação do pai.
- Sempre lhe disse que homens e anjos são iguais em muitos aspectos. A única diferença é que não podemos escolher nosso caminho. Mas temos as mesmas emoções, sentimos da mesma forma.
- Agora entendo tudo o que me ensinou.
A morena fitou seus olhos por um longo instante. Rendendo-se a seus instintos o beijou delicada e longamente. As mãos de Raphael seguiam as curvas do corpo de Ayla. Pareciam se encaixar perfeitamente. A respiração da jovem começou a ofegar.
Delicadamente ele tirou a túnica que protegia o corpo dela. Ele não recuou como fizera tantas outras vezes. Tudo o que desejavam naquele momento era estar um nos braços do outro. E sem medo de amarem e serem amados se entregaram ao mais puro sentimento.

Verdadeiro Sentimento

Ela nunca estivera ali. Era a maior honraria que um celeste podia receber. Ser convidado a residir no Castelo da Luz. Nesse palácio residiam os respeitados arcanjos. Não imaginava o que poderia ter feito para merecer tão grande recompensa, mas estava lisonjeada.
Caminhava ao encontro de seus generais escoltada por um querubim. Não sabia o motivo, mas algo naquele guerreiro não a agradava. Ele a seguia com a mão apoiada no cabo da espada.
Foi levada a nave central do palácio, ou como era conhecida a sala dos tronos. Ali havia cinco tronos de ouro puro, mas apenas quatro eram ocupados. No topo estava sentado o Príncipe dos anjos, Miguel. Logo abaixo, Raphael, a cura de Deus. Ao seu lado o trono estava vazio. Pertenceu a Lúcifer antes da queda. Abaixo estavam, o Mestre do fogo, Gabriel e Uziel. Respeitosamente a morena se ajoelhou a frente dos patronos.
- Seja bem-vinda, Anjo de Gelo. – Cumprimentou Gabriel.
- Obrigada, Mestre do Fogo. Sinto-me lisonjeada pelo convite.
- Também estão gratos que tenha aceitado o convite. – Levantou-se Miguel. – É uma de nossas melhores agentes, depois de tantos feitos gloriosos e conquistas memoráveis, é justo o convite que lhe fizemos para passar a residir no Castelo da Luz.
- Somente cumpro com meus deveres, senhor. É com honra que todos que os servimos sacrificaríamos nossas vidas para que fiquem seguros.
- Sabemos disso, Anjo. – A voz de Uziel era ríspida. Não concordou com o convite que os irmãos fizeram a jovem. – Já basta de agradecimentos, pode se retirar. – Fez sinal para o querubim. – Ele lhe mostrará o seu aposento.
Constrangida com a maneira que o Arcanjo a tratara simplesmente assentiu. O querubim segurou-a pelo braço forçando-a caminhar. Ao chegar à porta de seu quarto se sentiu aliviada por não precisar mais ficar na companhia daquele assombroso anjo.
Decidiu banhar-se. Estava exausta. Havia acabado de regressar de uma de suas missões. Sentia o cheiro do sangue do anjo caído que havia enfrentado. Vestiu uma túnica de seda que encontrou sobre a cama. Não imaginava que um dia poderia estar ali. Bateram a sua porta. Ao abri-la se surpreendeu com quem encontrou do outro lado.
- Não esperava encontrá-lo aí. – Disse surpresa.
- Desculpe não quero incomodá-la. Só vim lhe dar as boas-vindas e pedir desculpas por meu irmão. – A voz serena.
- Não precisa se preocupar. Estou acostumada com esse tipo de tratamento. Vivi muitos anos entre humanos. E eles nem sempre são educados. – Ela sorriu.
- Acredito que nos daremos bem, - comentou Raphael.
- Acredito que sim. – Não sabia mais o que dizer.
- Bom, vou deixá-la descansar. – Sorrindo se virou e caminhou de volta para a sala dos tronos.

Os dias foram passando. Acostumara-se aquele lugar. Aprendera a cativar o respeito e o carinho dos arcanjos. Especialmente do Quinto Arcanjo. Passavam a maior parte do tempo juntos. Conversavam sobre tudo. Ele a ensinava sobre a vida celeste, enquanto ela compartilhava experiências da vida mundana.  A inimizade que
Uziel nutria pela jovem só fazia aumentar. Mas nenhum de seus iramos entedia o motivo. Como todos guardam segredos, era isso que o Arcanjo fazia. Preferia não revelar.
Depois de um longo passeio pelos jardins que Raphael mandara plantar para ela, sentaram-se no banco de bronze decorado com inúmeras rosas. Fitavam o horizonte. O Anjo de Gelo não queria apenas a sua amizade.
 Não sabia como agir, pois, o Arcanjo nunca vivera entre os humanos. Não se permitia sentir, e não demonstrava quando o fazia. Depois de tanto tempo convivendo juntos, ela acreditava que aquele era o momento de fazê-lo entender o que descrevia com palavras.
- Acho que já lhe ensinei o mais importante sobre os sentimentos humanos, não é? – Disse desviando o olhar para fitá-lo.
- Sim. Acredito que agora entendo as reações desesperadas que alguns tomam. – Ele a olhou. – Você também parece se portar dessa maneira às vezes.
- A convivência foi longa. Não é tão fácil esquecer tudo o que se vive lá. Cada emoção parece que domina o ser. E às vezes não é fácil parar e pensar antes de agir, afinal não é sempre que há tempo para isso.
- Sempre que a observo percebo que é impulsiva. – Ele sorriu.
- Não como antes, ou como quando estou em contato com algum humano. – Os olhos verdes reluziram. – Mas não agi impulsivamente com você.
- E tem motivos para isso?
- Sim. Mas temo que o desaponte.
- Se não tentar não saberá. – Ele fitou-a diretamente nos olhos.
- Não é simples. Por isso, sou cautelosa quanto a você. Nunca deixa transparecer o que realmente sente. Isso me deixa confusa.
- Como lhe disse se não tentar não saberá o que realmente estou sentindo. – A última frase soou em tom de desafio.
- Tudo bem, - Aquela seria a primeira vez que abriria seus sentimentos a alguém sinceramente. – Não sou boa com palavras como você, mas tentarei me fazer entender da melhor forma possível.
- Sim, estou lhe ouvindo. Tem toda minha atenção.
- Sei que pode sentir. Todos nós podemos. É uma dadiva que recebemos do Criador. Depois de todos esses dias que venho convivendo com você, algo de diferente aconteceu. Eu havia jurado que jamais deixaria esse tipo de sentimento tomar conta de mim. Ele confunde tantos os humanos, quanto os celestiais. Por ele já presenciei mortes, tristezas profundas. Mas não é possível evitá-lo. – Ela fez uma pausa e observou o sol se pondo além do monte. – Por isso decidi dizer o que estou sentindo.
- Diga. – Um sorriso maroto moldava seus lábios. Ele conhecia os sentimentos mais profundos de todos os seres. E com ela não diferente.
- Estou amando, Raphael. Estou experimentando pela primeira vez em toda minha existência, algo tão puro quanto à essência do ser que nasce. Estou experimentando um sentimento capaz de promover a entrega total, não só do ser, mas também da alma para aqueles que desfrutam dela.
- Entendo tudo o que me diz. – Tocou a mão da mulher com rosto de menina que estava sentada ao seu lado. – Também estou conhecendo esse sentimento que o Pai queria nos proporcionar. E foi você quem o fez surgir.
Os olhos do Anjo de Gelo se iluminaram. Tudo que precisava ouvir ele lhe dissera. Não conseguia esconder a felicidade que sentia. Sem medir seus atos, como o Arcanjo mesmo lhe dissera, abraçou seu pescoço. A sensação de sua pele tocando na dele era incomparável.
Tudo o que o que pôde fazer foi beijá-lo. Mas ele não esperava por sua atitude, surpreso recuou. Afastando-a de si. A decepção a afligiu, mas entendia a reação de Raphael. Ela vivia como os terrenos. Fazendo tudo de maneira precipitada.

A partida

Ela não queria desperdiçar um minuto sequer longe dele. Tudo o que queria naquele momento era poder sentir o toque da pele na dele. O rosto de Raphael estava iluminado como nunca estivera antes. Agora ele conhecia o sentimento que tornava uma pessoa melhor. Mas a preocupação com a amada só fazia aumentar, sabia que ela poderia se apaixonar novamente. Não queria pensar nisso.
- Eu voltarei, - a voz suave e delicada quebrou o silencio. – Mesmo que demore anos, eu voltarei para você.
O Quinto Arcanjo fitava o teto alto do aposento. Acreditava nas palavras que ela acabara de proferir, mas não sabia por quanto tempo elas seriam verdadeiras.
- Eu sei. – Segurou a mão pálida que repousava sobre seu peito. – Eu sei.
- Não quero que fique preocupado. Imagino tudo que está pensando. Mesmo que volte a viver como humana, não creio que possa encontra um amor mais forte do que sinto por você.
- Anjo de Gelo, você nem ao menos se lembrara de que eu existo. Apenas quando sua missão for cumprida. Mas até que isso aconteça, não duvide que possa encontrar alguém que ame.
- Não duvido. Mas de alguma maneira me lembrarei de que você está comigo.
Aquilo findou a discussão. Sem saber quando se encontrariam novamente. Entregaram-se, um ao outro pela última vez. Atrás deles, o sol começava a nascer. Era o sinal que a partida se aproximava.
Raphael deixou-a no leito e foi se preparar. Devia estar presente quando ela partisse. Mesmo que tudo indicasse que Ayla não retornaria, queria guardar consigo a esperança que a jovem deixara com suas palavras.
Tudo o que realmente desejava era poder ir também, dar lhe proteção, mas sabia que isso era impossível. A morena não era indefesa. Conhecia bem seus feitos. Estava na hora de entender que ela não era uma garotinha, mas sim uma mulher. Um anjo poderoso.
Ayla estava pronta. Mas um pouco agitada. Não sabia explicar o motivo. Talvez não quisesse ir. Ou não desejasse deixá-lo ali. Mas como sempre costumava dizer a todos que a acompanhavam em suas missões: “Não devemos temer a nada, pois o pior que poderá acontecer será perdermos a vida, mas se isso acontecer deve-se ficar honrados. Nossa missão foi concluída”. Ao se apresentar perante aos seus generais, estava preocupada. Mas respirou fundo para se concentrar. Tudo o que menos queria era deixar Raphael preocupado também.
- Desejo que obtenha êxito. – Disse Miguel. – Você não saberá o que estará procurando, mas saberá quando a missão terminar.
- Sim. Irei sozinha?
- Por enquanto sim. Caso precise de ajuda enviaremos reforço.
- Tudo bem. – Assentiu. – Estou pronta.
Fechou os olhos, a concentração a deixava incomunicável naquele momento. A mente vagou pela escuridão do universo. Era a sua partida.

A recuperação 

Dariel acelerava o Mustang pela rodovia. Era preciso chegar a um lugar seguro. Não sabia quanto tempo Hadassa ficaria desacordada. Pelo espelho retrovisor via o rosto de Ayla. Os lábios ainda estavam manchados de sangue. Ela precisava descansar.
Os olhos verdes do rapaz começaram a lagrimejar. Sabia que quando acordasse se recordaria da vida anterior a tudo aquilo. E ele não fez parte dessa vida. As palavras da vendedora do litoral voltaram à mente: “alguém a espera”.
No banco de traz a jovem revivia todas as suas lembranças. Tudo fazia sentindo agora. Ela nunca teve pais, irmã, e nem fora um humano um dia. Recordava-se de tudo, dos dias antes de ir viver no Castelo da Luz com os Arcanjos.
Outra lembrança voltou com mais força. Uma figura masculina formou-se perfeitamente, os olhos verdes oliva a fitavam. O rosto moldado por cabelos cor de bronze esboçava um sorriso. Raphael. Era ele, o Quinto Arcanjo. “Eu voltarei”, havia prometido. E agora podia cumprir.
Os olhos se abriram. O corpo estava dolorido e sentia gosto de sangue. A chuva ainda caia torrencial, uma reação perante a ameaça que o anjo de fogo representava a ela enquanto estivesse incapacitada. Mas não sabia onde estava. Olhou para o banco a sua frente e encontrou Dariel. Estava absorto em seus próprios pensamentos e se assustou com o toque da moça.
- Não devia estar descansando? - Ralhou ele.
- Isso não importa agora. Onde estamos, ou melhor, para onde estamos indo?
- Indo para um lugar seguro. Você ainda não está pronta para outro embate.
- E quem lhe disse isso?
- Eu estava lá, esqueceu? Hadassa deve ter despertado também, isso não é um bom sinal.
- Não acredito. – A voz estava firme e confiante. – E já estou bem. Aquele idiota não me atingiu tão forte assim. – Mas era mentira, podia sentir as costelas quebradas.
- Claro que não. – Ele riu sem humor. - Por que sangrou então?
- É comum depois de sofrermos pancadas. Você não parece viver entre os humanos. – Ela meneou a cabeça negativamente.
- Se fosse um simples terreno ali, teria morrido. A hemorragia seria fatal. Mas você não é humana.
- Sei disso. – Raphael havia lhe dito que quem fosse responsável por tomar conta dela seria orientado a mentir para lhe proteger. – Vocês foram instruídos a mentir. Mas isso não importa mais, agora quero voltar para casa.
- Para casa? Tem certeza disso? Você não deveria dizer que quer voltar para Raphael? – A voz assumiu um tom de irritação.
- Para voltar para ele, devo primeiro voltar para casa. E sei por que você está agindo assim. Mas entenda o que aconteceu entre nós foi apenas uma ilusão.
- Sei disso. Mas é difícil aceitar. E, além disso, foi uma ilusão para você, pois para mim foi real.
- Não irei condená-lo por isso. Mas entenda que nada pode existir entre nós, acreditava que era humana, nem ao menos conhecia o Quinto Arcanjo. Mas eu o amo. Desde o primeiro instante que o vi. Não sei como vai reagir a me ver, depois de tanto tempo que estou longe. Mas preciso vê-lo.
- E se não a aceitar? Já faz anos que você está aqui.
- Já pensei nessa possibilidade. Mas estou disposta a correr todos os riscos. E se isso realmente acontecer, voltarei a viver como vivia antes.
Dariel apenas concordou. Entrara em uma estrada de terra. De onde estavam era possível avistar uma velha construção. Mesmo que não admitisse ele sabia que ela precisava descansar. Estacionou o carro sob uma arvore e desceu. Era melhor que ficasse sozinha. A noite não tardaria a chegar.
Sem sonhos
Ao abrir os olhos naquela manhã, a menina não conseguia se lembrar do que sonhara na noite anterior. Ao olhar no relógio percebeu que estava atrasada para o colégio. Desceu depois de se arrumar. A mãe ainda estava na cozinha servindo o café ao marido. Com um sorriso nos lábios fez uma observação:
- Estão todos atrasados hoje. – Serviu uma xícara de café para ela. – Hadassa pediu que a esperasse um momento.
- Tudo bem. Não tenho presa.
Esperou pela irmã na sala. Parecia estranha. Mas sabia que era apenas impressão. E logo a irmã gêmea, desceu do quarto. Com um sorriso nos lábios.
- Desculpe o atraso.
- Como se você fosse à única atrasada aqui. –Olhou para o pai saindo da cozinha. As duas riram.
Como sempre fazia, o pai as deixou no colégio. Cada uma saiu com suas amigas. Andavam sempre juntas, mas ali tinham um trato para que pudessem fazer o que gostavam individualmente.
Ayla seguiu ao lado de Júlia. Sua amiga tagarelava sobre os acontecimentos do fim de semana. Mas a moça não lhe dava muita atenção. A sua frente à irmã estava com as amigas, e um rapaz. Algo chamou sua atenção, mas não sabia explicar o que era. Ficou tonta de repente, mas conseguiu se equilibrar rapidamente. Havia algo de errado ali. E ela iria descobrir.

Conversa Franca

Mesmo que tentasse não conseguia dormir. Já não estava ferida. Queria voltar logo para o palácio. Mas as palavras de Dariel a deixaram preocupa. Ele tinha razão. Talvez ele não a aceitasse, mas havia prometido que tudo seria diferente quando retornasse. Havia prometido que não se esconderiam mais. E acreditava nele. Não havia mentido, não depois da noite que passaram juntos.
Caminhando pelo gramado enlameado, os pensamentos não o abandonavam. Não devia ter dito nada sobre o Quinto arcanjo para ela. Não era sua função ali. Mas não queria vê-la sofrer. A chuva acabara com a chegada da noite. A lua iluminava o horizonte.
E mesmo que fosse uma Ishin, a convivência com os terrenos a deixara como eles. Pôde perceber no calor da batalha. O sentimento pela irmã angelical falou mais alto e ela não a derrotou. Jamais poderia saber a verdade sobre ela e A cura de Deus. Não podia sequer imaginar que o anjo de fogo fora a responsável para que Raphael se fechasse aos sentimentos.
Estava na hora. Não via mais motivos para adiar a volta. Talvez Miguel a perdoasse por não ter lutado contra Hadassa. Desde o momento em que conhecera Rendorf, sabia que ele era o verdadeiro culpado. No instante em que morrera, sua aura voltara a brilhar.
Recupera a memória, e estava pronta para enfrentar qualquer sentença que os comandantes lhe dessem. Mas antes precisava encontra-lo, toca-lo, sentir sua pele. Era mais forte do que ela. Precisava pedir perdão por ter se apaixonado pelo anjo guardião. Talvez não precisasse fazer isso, ele sabia que mesmo que isso tivesse acontecido nunca deixara de amá-lo.
Dariel voltou ao carro ao nascer do sol, mas não encontrou o Anjo de Gelo com uma boa expressão. Notara que não dormira a noite toda, mesmo precisando. Os olhos vidrados em um ponto fixo a sua frente. Sem entender a líder, assumiu o banco do motorista e deu partida no carro.
- O que sabe sobre Raphael que não quer me contar? – O olhar interrogativo o deixou preocupado.
- Do que exatamente está falando?
- Você disse que ele poderia não me aceitar. Agora quero saber por quê?
- Não estou autorizado a lhe falar sobre isso. Você saberá quando chegar o momento certo.
- Sou sua líder?
- Sim, fui enviado para encontrá-la e guiá-la até o fim da missão.
- Bom então isso é uma ordem. Conte-me agora o que sabe.
Sem poder negar a ordem da líder, suspirou. Não podia negar que quando queria algo era uma bela estrategista.
- Tudo bem. – Rendeu-se. – Você já sabe que o Quinto Arcanjo fora casado com uma Ishin antes de você, não é?
- Não. – Ela balançou a cabeça. Tentando entender.
- Pois bem, isso aconteceu há muito tempo. Eles se conheceram em um confronto contra as ordens de Lúcifer. Depois disso não se separaram mais. Quem os visse não diria que eram apenas amigos. Sabe quem era ela?
- Não faço a mínima ideia. Sabe quantos Ishins eu conheço? – A voz assumiu um tom misto de irritação e ironia.
- Essa talvez você conheça mais que os outros. Mas vamos deixar essa parte para que o próprio Raphael lhe conte está bem?
- O que me disse já é de grande ajuda. – Ela estava tentando juntar as peças. Mas era difícil.
Deixando isso de lado, simplesmente passou a observa a natureza que os rodeavam. A vida havia mudado as promessas feitas já não tinham mais validade. Ele nunca a amara de verdade. Só a usara para esquecer a Ishin por quem fora apaixonado. Não passara de uma peça em seu jogo. Mas o que importava agora era o encontro com seus Generais.

O Pedido

Com o passar dos dias Ayla, passava a gostar menos do rapaz que estava com a irmã. Não entendia o motivo de sempre se encontrarem escondidos. Mas não queria dizer nada.
Naquela noite, Hadassa chegou tarde. Seus pais já estavam dormindo, mas a irmã a esperava. O jeito meigo da jovem a incomodava. Não via motivos para ser tão gentil e amável com todos. Deixando Ayla de lado foi se trocar.
- Estava com ele, não é? – A voz suave quebrou o silencio do quarto de Hadassa.
- Isso não é da sua conta, não acha?
- Não. Acredito que seja inteiramente da minha conta. Você está diferente, age como se não tivesse família Hadassa.
- Por que diz isso?
- Você não tem saído conosco nos últimos meses. Eles me perguntam onde você está e nunca posso dizer a verdade. Não acha que esse homem com quem está saindo, seja uma péssima influencia?
- Não. Nós nos amamos. Você não entenderia isso se eu lhe contasse como é., mas o que quer que eu faça? – A pergunta era irônica, ela não faria nada do que Ayla dissesse.
- Afaste-se dele. Sinto que há algo de errado com ele, mas não sei o que é. Por isso te peço, por favor, deixe-o.
Ela concordou. Mas não sabia por quanto tempo ficaria longe de Rendorf. Mesmo que quisesse, era tarde demais, o amava. Ao contrário do jovem anjo, Hadassa se lembrava de tudo.
Sabia quem era aquela menina sentada em sua cama. E mesmo que sua natureza desejasse destruir o anjo caído, ela aprendera a gostar dele. Mas o que estaria por vir não seria agradável para nenhuma delas.

Verdade Cruel

Enquanto descansava, Dariel a levava ao Castelo da Luz. Estava inconsciente. A batalha fora demais para ela. Mesmo que fosse treinada para combater os anjos caídos com seus poderes elementais, não suportara a carga de energia com que Rendorf a acertara.
Depois de um pouco de descanso estaria bem novamente. Ele a levou para os seus aposentos. E se encaminhou para a sala dos tronos onde os Arcanjos descansavam. O jovem anjo se prostrou aos pés dos generais.
- Então anjo, como se saiu? – Perguntou Gabriel.
- Ela está em segurança. O anjo caído fora derrotado, mas Ayla se recusou a enfrentar Hadassa. Não sabemos onde ela está agora, pois me vi obrigado a tirar o Anjo de Gelo de lá.
- Muito bem. – Cumprimentou Miguel. – Hadassa será um problema futuro. Por enquanto o que realmente importa é a segurança da Ishin. Ela sofreu algum dano físico?
- Sim. Rendorf a atingiu, mas está bem agora. Só necessita de um pouco de descanso.
- Fico grato que tenha salvado a nossa melhor agente.
- Fiz isso porque a amo. – Disse friamente Dariel, lançando um olhar para o Quinto Arcanjo.
- Mesmo assim agradeço. – Respondeu Miguel. – Pode se retirar agora. Descanse.

No quarto Ayla acordava de um sono turbulento. Depois de tudo o que o anjo havia lhe falado, começara a juntar as peças. A Ishin com quem Raphael fora casado era Hadassa. Mas não fazia sentido à preocupação que sentia sabendo que sua missão era resgatá-la. Muito menos duvidar de que ela não o amava a ponto de se apaixonar verdadeiramente por outro.
Tudo fazia sentido agora. Não era com ela que o Quinto Arcanjo estava preocupado, mas sim com ele. Pois não sabia se ainda sentiria o mesmo por Hadassa. Cada vez que a olhava via nela Hadassa, mas os temperamentos diferentes demonstravam que eram totalmente distintas. Naquela tarde, a jovem decidiu que tudo teria um fim. Não o obrigaria a decidir entre elas.
Depois de banhar-se estava pronta para se apresentar perante os Arcanjos. O corredor parecia maior, depois de tanto tempo longe. As asas cor de areia se agitavam.
A Ishin sabia que algo estava diferente. Ao adentrar a sala dos tronos, encontrou apenas Miguel. Prostrou-se diante do domo, mas o Príncipe dos Anjos fez um sinal para que se levantasse.
- Seja bem-vinda, Ishin. – Cumprimentou-a.
- Obrigada. – Ela baixou o rosto. – Sinto não cumprir a missão. Não pude resgatar Hadassa. Ela estava apaixonada pelo anjo caído. Não fui capaz de derrotá-la após o embate com o traidor, apenas tive tempo de salvar a vida do anjo Dariel.
- Não foi culpa sua. Desde o começo sempre soube que ela não regressaria.
- Seu irmão tinha esperança de que eu conseguisse. Mas falhei.
- Não se preocupe. Hadassa não é mais um Anjo. Ao se apaixonar pelo anjo caído acabou se juntando as ordens de Lúcifer.
- Tudo bem, como queira.
- Pode se retirar. – Disse o Príncipe dos anjos.
Sem saber para onde ir decidiu seguir para o único lugar que realmente gostava no Castelo da Luz, o jardim. O sol brilhava forte ali, dando as cores das flores um tom especial. Caminhar por entre elas trazia paz a qualquer um que necessitasse. E era isso que necessitava naquele momento.
Sem que a jovem morena percebesse, Raphael a segurou pelo braço puxando-a para si. A sensação da pele tocando a dele foi mais forte. Não conseguia sequer raciocinar o que faria a seguir. Dessa forma impedi-a de dizer sequer uma palavra. Os olhos verdes reluziam. Beijou-a delicadamente. Estava cedendo aos instintos humanos que sempre quisera ocultar.
- Cumpri minha promessa, estou de volta. – Disse ao pousar a cabeça no ombro do Arcanjo. – Voltei sã e salva, mesmo que tenha me apaixonado enquanto pensava ser humana, agora isso não faz sentido algum. Eu sempre o amei.
- Sim, mas creio que não cumpri a minha.
- Como?
- Nem sempre lhe falei a verdade. E acredito que sabe disso.
- Sim, eu sei. Mas você não me prometeu que me diria sempre a verdade. Conheço todo o seu passado, Quinto Arcanjo. E se estou aqui é por um único motivo. Eu o amo. Mas sei que não posso lhe obrigar a compartilhar dos mesmos sentimentos que eu, desde que recobrei a memória e soube o que houve de verdade, tento entender que se decidir ir atrás dela é porque deviria ter sido assim.
- Gosto de sua forma de ver as coisas, Ishin. Sempre otimista. Mas não vejo como entender que podemos ficar separados.
- Simples Raphael. Eu vivi como humana. Para eles uma decepção é passageira, tudo pode acabar de uma hora para outra. Aprendi que devemos viver intensamente, sem medo de nos entregar. Não sei quando vou sair novamente, mas enquanto estiver aqui quero ficar ao seu lado mesmo que apenas como uma boa amiga.
A conversa foi interrompida por um dos querubins guardas do palácio. Com a lança em punho reverenciou o Arcanjo.
- Senhor, seus irmãos o esperam. Há alguém que deseja vê-lo. – Os olhos de caçador se dirigiram a Ayla.
Aquele olhar a fez se arrepiar. Era como se ele pudesse ver sua alma e pudesse destruí-la com apenas um toque.
- Obrigado, já estou indo. – Observou o querubim se afastar. – Preciso ir, continuaremos nossa conversa mais tarde.
Ela apenas assentiu. Algo lhe dizia que não teria mais tarde para os dois. Tudo estava começando a voltar ao normal. E se fosse quem ela pensava ser na sala dos tronos, era melhor que saísse de vez do castelo. 

O Regresso do Anjo de Fogo

Tudo o que Hadassa queria ao voltar para o Castelo Da Luz era poder se vingar da Ishin do gelo.  Não suportava o fato de que Ayla havia matado o amor de sua vida. Não estaria contente enquanto não pudesse fazê-la sofrer tudo o que sofrera naquele dia.
Imaginava que Dariel era seu alvo, mas não sabia que estava enganada. Não imaginava de que maneira faria isso sem levantar suspeitas. Sabia que os demais Arcanjos não acreditariam em seu arrependimento, principalmente após estar com um anjo caído.
Caminhando pelos corredores já conhecidos, a imagem de Ayla se formava mais nitidamente em sua mente. O ódio que nutria pelo Anjo de Gelo era absurdo. Que só aumentaria após saber que seu antigo companheiro a amava e que ela também o amava. Ao chegar à porta da sala dos tronos viu Miguel e Gabriel conversando.
- Com sua permissão, Príncipe dos Anjos. – A voz soava sedosa, tranquila como se não estivesse ali somente para cumprir sua missão a mando da estrela da manhã. Ele perdera um de seus melhores agentes agora que Miguel também perdesse. E ainda poderia se vingar da Ishin.
Miguel se virou para ver de quem era àquela voz, e se surpreendeu ao ver o Anjo de Fogo parado diante dos tronos. Não admirava sua ousadia de estar ali. Já era esperada por ele. Não o surpreendia que depois de ter perdido um companheiro e um dos melhores agentes de seu irmão nefasto, ambos quisessem vingança.
- O que faz aqui Anjo caído? – Perguntou Gabriel notando o espanto do irmão.
- Não me chame de Anjo caído, Mestre do Fogo. Estou arrependida pelo que fiz e vim pedir-lhes que me aceitem de volta.
- Não admito esse tipo de comportamento entre meus agentes. E não acredito que esteja mesmo arrependida. – Bradou Miguel.
- Posso provar-lhe que digo a verdade, só lhe peço uma chance.
- Você terá sua chance. Mas se estiver mentindo será punida. E não terei pena.
O Anjo de Fogo queimando de ódio pelo Arcanjo, apenas assentiu e se retirou da sala. Queria encontrar Ayla, olhá-la nos olhos e ver sua expressão. Não queria surpreendê-la, mas sim deixá-la com medo. Dessa forma seria mais fácil vencê-la, já que ela controlava também a água.
Mas primeiro precisava descansar e encontrar o Quinto Arcanjo. Mesmo que o achasse idiota. Pois ela gostava do poder, e Aquele Arcanjo era diferente de todos os outros. E agora tinha ao seu lado alguém tão ambicioso como ela, a Estrela da manha. O Arcanjo Sombrio. Com um sorriso malévolo seguiu para o seu antigo quarto.

Encontro Desleal

Aquele lugar estava se tornando desagradável para ela, passava quase o dia todo trancada no quarto para não os encontrar juntos. Estava cansada de ser humilhada pelo Anjo de Fogo. Mas sabia que ela estava certa. O Quinto Arcanjo nunca fora seu de verdade.
Naquela tarde, decidiu ir ao jardim, um presente de Raphael a ela. As flores ali nunca perdiam a beleza. Mas nem sempre os sentimentos correspondiam ao esplendor. Estava abatida, tristonha. Como se mais nada fizesse sentido. Tudo o que queria naquele momento era poder encontrá-lo, tocá-lo. Mas sabia que era impossível. Ela não o deixava sozinho para que esse momento não ocorresse.
Desde que descobrira que Raphael a amava, Hadassa havia feito de tudo para que não pudessem sequer conversar como faziam antes.
As rosas tinham florescido naquela manhã, dando um colorido magnifico ao jardim. Não era suficiente apenas olhá-las de longe, mas era preciso tocá-las, sentir o toque aveludado das pétalas nas mãos. E foi pensando assim que Ayla desceu até o roseiral.
Ao longe, Hadassa a observava do topo do palácio. As asas brancas se agitando de excitação. Aquele era um bom momento para acabar com a rival e conquistar de vez a confiança do Arcanjo Sombrio. Os olhos castanhos reluziram a luz do sol. Tendo certeza de que ninguém a vira ali alçou voo.
A menina parou a cerca de dez metros da Ishin, sem saber como reagir naquela situação. Mesmo sendo um anjo Elemental sentia o perigo que corria diante daquela criatura. Tentou se afastar, mas foi impedida por uma cortina de fogo.
O Anjo de Fogo sorriu ao ver a surpresa e o medo nos olhos da inimiga. Era tudo o que desejava, e aquela sensação a fazia se sentir ainda mais forte.
- Achava que tinha me esquecido de você? – Ela gargalhou. – Você é inesquecível, Ishin, mas não para mim é claro.
- O que quer?
- Conversar. Não precisa ficar assustada. Não lhe farei mal algum.
- Claro que não posso acreditar no que diz. Você só pensa em fazer mal a todos que a rodeiam. Assim como tem feito mal a Raphael.
- Ora, vejo que tem falado com Raphael. Achei que tinha deixado bem claro que queria você longe dele.
- Não vou me privar das nossas conversas, muito menos agora que você voltou e ele precisa de alguém para dizer o que está acontecendo. Contar como e atormentador viver ao lado de um anjo que se tornou demônio e apenas retornou para se vingar e cumprir ordens do arcanjo sombrio.
- Não tem medo, não é? Você daria sua vida para salvá-lo. Mas não discordo. Há muito pouco tempo faria a mesma coisa, não só por ele como por qualquer outro dos primécios.
- Não, não tenho. Nasci para isso. Se necessário sacrificarei minha existência por eles. Mas você não. Mudou desde que nos encontramos pela primeira vez, sempre foi ambiciosa. Mas acredito que tenha encontrado quem seja assim, como você.
- Encontrei sim, e é por ele que estou aqui. E dessa vez não falharei em minha missão. Quero lhe dizer adeus. - Dizendo isso ela lançou uma bola de fogo na direção de Ayla.
A destreza a salvou. As asas cor de areia se abriram. Desviando-se da mira da oponente. Não queria lutar, pois sabia que Raphael ficaria magoado se ela vencesse sua esposa. Mas era necessário para sobreviver. Não era ela quem havia começado a batalha.
Invocou a chuva e apagou o fogo que começava a se alastrar pelo roseiral. Conjurando seus poderes, lançou uma estaca de gelo afiada. Mas adversaria controlava a fumaça. Isso a ajudou a se desviar do ataque e facilitou para que se escondesse. Não sabia mais para onde o anjo de fogo havia ido.
Aquele era um encontro desleal. Não havia regras nem respeito ao outro. Hadassa atacou Ayla pelas costas. A força do impacto lançou a Ishin para frente, enterrando-a no chão. Poeira subiu formando uma nuvem ao redor da cratera que se formara.
Acabou. A jovem Ishin do Gelo estava desacordada. Sem forças para reagir. Aproveitando-se da situação a êmula usou de seus dons e incendiou o roseiral. Gargalhando deixou o jardim. Cumprira sua missão e se vingara da rival. E ainda provocaria no Quinto Arcanjo uma dor incomparável, seria excepcional vê-lo chorar a morte de sua amada.

Bem x Mal

Raphael não acreditava no que via. Diante de seu trono estava uma mulher. O cabelo moreno e liso caia por suas costas, as asas brancas pulsavam. Não existiam mais dúvidas. Era Hadassa. Mas por que voltara agora? Depois de tanto tempo? Qual o motivo para se tornar uma traidora? Todas essas perguntas passavam pela mente da Cura de Deus. Mas as respostas não.
Queria lhe fazer todas essas perguntas pessoalmente. E sabia que ela não poderia esconder as respostas dele. Eram companheiros de vida. Há muito tempo. Juram jamais deixar um ao outro, mas ela descumprira.
Esteve com o anjo caído. Ele sabia. Mas o sentimento naquele momento falou mais forte. Não se lembrava de que havia jurado amor a Ayla. Nem ao menos se lembrava dela. Sem conter o impulso correu em sua direção e abraçou.
Atrás da porta de ouro que guardava a sala dos tronos, a Ishin via e ouvia tudo. Não suportou ver o Quinto Arcanjo abraçando a traidora. Como ele poderia acreditar no que ela dizia, sem ao menos questioná-la? Era difícil perceber que ao ter de escolher entre o bem e o mal, ele havia feito à escolha errada. As lagrimas caíram em forma de despedida. Tudo o que queria era a sua felicidade, mesmo que isso custasse a sua.
E sabia que Hadassa não descansaria enquanto não o visse chorando. E, principalmente, enquanto não visse Ayla sofrer. Será que era assim que ela se sentira quando viu Rendorf morrer?

O Ofanim 

Ayla retomou a consciência. Não conseguia se mexer o corpo doía. O golpe havia sido forte demais. Seu corpo não era preparado para batalhas corpóreas. Era um anjo Elemental. Sua pele estava coberta por escoriações, ela sangrava. Mas não era isso que a preocupava, o jardim estava tomado pelas chamas. Precisava sair dali. Mesmo que usasse seus dons angélicos não teria condições de se salvar.
 O que importava agora era sair dali e provar para todos que Hadassa não havia mudado. Simplesmente mudou de lado para conseguir sua vingança. Estava ao lado daquele que sempre quis destronar todos os irmãos. E sua principal oponente no momento era ela, o Arcanjo Sombrio sabia que ela estava disposta a proteger da maneira que fosse preciso os Arcanjos e não estaria sozinha nessa luta.
Todos os anjos ficariam ao seu lado e suas ordens seriam facilmente vencidas. Mesmo que fossem anjos caído, muitos desconheciam o poder dos Ishin, pois quase nenhum quis se juntar a eles.
As labaredas chamuscavam suas asas. Isso a deixava desesperada. Iria morrer sem ao menos avisar aos Arcanjos sobre a traidora que abrigavam. Não adiantava lutar. O menor esforço que tentava fazer custava-lhe a dor que o se seguia.
O melhor que tinha a fazer era aceitar. Estava acabado. A existência de gloria seria dizimada daquela maneira. Mas algo a fez lembrar-se do juramento que fizera ao se tornar um soldado das legiões dos Arcanjos: “Tudo que sofreres não será nada comparado à vida daqueles que devemos proteger”.
Reunido às ultimas forças, conjurou seus dons e uma chuva torrencial caiu apagando o fogo que consumia o jardim. Tudo estava acabado. Nada do que fizesse a salvaria. A escuridão voltou a assolar novamente.


Do alto da torre, ele avistou as chamas. Não imaginava por que alguém destruiria aquela obra de arte. Mas algo estava errado, precisava ir verificar. Mesmo sendo contra violência, faria de tudo para salvar a vida de alguém. Os seus angélicos eram ligados à luz. Não tinha qualquer capacidade de defesa fisicamente, mas sabia que unido a alguém que a tivesse poderia ajudar.
A visão que teve ao chegar ao local onde ocorrera a batalha era surpreendente. Ninguém nunca vira o Anjo de Gelo tão fragilizado como naquele momento. A pele pálida tinha escoriações. Tinha as asas chamuscadas e rajadas de sangue. Tomou-a nos braços. Precisava de cuidados. O Ofanim sabia que a vida da Ishin corria perigo. Talvez, se não fosse ele, ela já teria morrido.

Sacrifício por amor

Não restava mais nada a fazer. Ele havia decido. Com suas artimanhas, o mal triunfara. A vida que escolhera tinha sido interrompida. Nada do que dissesse ou fizesse mudaria a situação. Seus olhos não acreditavam no que viam. Era impossível acreditar que alguém como o Quinto Arcanjo poderia se deixar enganar daquela maneira.
O Castelo da Luz se tornava a partir desse momento um lugar insuportável para ela. Mas estava disposta a se sacrificar. Aprendera desde muito jovem, quando ainda residia entre os terrenos, que não é possível obrigar alguém a amar-lhe. Esse sempre fora o seu lema.
Cada vez que o olhasse, sentiria a mesma dor do primeiro instante em que os vira juntos. Mas estava pronta. Sua existência era baseada na proteção da humanidade não no amor. Tudo o que devia fazer era servir aquele que amava.
- Ayla? – Chamou-a.
- Sim, meu senhor?
- Não me trate assim. Sabe que não sou seu senhor.
- O que sei é totalmente o contrário. Você é um dos meus generais, mesmo que seja contra a violência. Mesmo sendo o patrono dos Ofanins. Estou aqui apenas para servi-lo.
- Sabe que não. Não quero que nos afastemos mesmo que tenha decidido ficar com Hadassa.
- Claro que não nos afastaremos. Vou continuar aqui, sempre que precisar de mim. Como agente. Estarei sempre a suas ordens.
- Não vamos conversar normalmente, não é?
- Sim, como general e agente. Nada mais.
Ele não objetou. Virou-lhe as costas. Não havia mais nada a ser dito. E não seria dita sequer uma palavra. Os sentimentos que transpareceriam pelo simples olhar não seriam iguais para mais ninguém
- Esse é o meu sacrifício, por amor. – A voz soou baixa, mas sincera.
Mas ele já não podia mais ouvi-la. Já estava distante. De volta ao seu trono. Lugar que nunca deveria ter saído. Aquela era a verdadeira distancia que deveria haver entre os dois.

O Último Beijo

Ao abrir os olhos não acreditou em quem estava ao seu lado. Pensara que nunca mais o veria. Dariel cuidava dela. Tratava de seus ferimentos. O sorriso que estampava os lábios do anjo era sincero e lindo. Cativava quem o visse. E não seria diferente com Ayla.
Ele tocou-lhe o rosto delicado, agora arranhado. Ela sentiu a melhor das sensações. Esse era um de seus dons, controlava as emoções de anjos e homens. Acalmava os aflitos sempre que necessário. Tudo o que queria naquele momento era poder retribuir o amor que o Ofanim lhe oferecia. Mas era impossível. E o próprio Dariel sabia disso.
- Está se sentindo melhor? – Perguntou com a voz suave e calma que costumava usar.
- Sim. Estou bem agora. Obrigada por ir me resgatar, se não fosse por você...
- Não me agradeça. – Ele a interrompeu. - Se fosse eu no seu lugar, você faria o mesmo.
- Claro que faria. – Mas sua mente estava em outro lugar. Precisava encontrar Hadassa antes que ela tentasse algo contra Miguel. – Preciso avisar o Príncipe dos Anjos sobre o que aconteceu.
- Ainda não. Você ainda está fraca, ferida. Não está pronta para outo embate. Se fizer isso poderá morrer.
- Me sinto bem. – Mentiu. Sabia que podia morrer se entrasse em uma luta com Hadassa, mas esse sempre o objetivo de sua vida. Se morresse protegendo os arcanjos teria honrado sua vida. – E prometo que ficarei descansando quando tudo isso acabar.
- Tudo bem. Irei com você, então.
- Certo, mas vamos. Preciso avisá-los antes que seja tarde.
Mesmo com o corpo dolorido não poupou forças para vencer o lance de escadas que davam acesso ao primeiro andar do Castelo da Luz. A sala dos tronos estava iluminada, as portas duplas abertas. E os Arcanjos reunidos.
A jovem Ishin entrou como um furacão. Sua presença causou espanto no Anjo de Fogo que se encontrava ao lado do Quinto Arcanjo. Os olhos castanhos fitaram Ayla.
- O que faz aqui, insolente? Essa não a maneira adequada de adentrar a sala dos tronos. – Foi Hadassa quem bradou.
- Príncipe dos Anjos, peço permissão para falar com o senhor? – Se ajoelhou perante os tronos. Mesmo cambaleando.
- Tem permissão. Pode dizer. O que deseja?
- Temos uma traidora entre nós. Ela me atacou. E se o Ofanim, Dariel, não me encontrasse estaria morta nesse momento.
Os olhos de Miguel dispararam para Hadassa. A face, antes calme e tranquila, se modificara. A expressão endurecera.
- Lhe disse que não aceitaria qualquer forma de traição de sua parte Ishin. – Bradou. – Você será punida. Sempre desconfiei de seu arrependimento. Agora faz parte das ordens da Estrela da Manhã.
- Como pode acreditar que possa ser eu. Nunca lhe dei motivos para duvidar de minha índole.
- Vejo que tem a memória seletiva não é, Anjo do Fogo? Esquece-se de sua união com o anjo caído.
Sem poder negar a acusação de Miguel, lançou-se para frente dos tronos, onde Ayla se encontrava. Os olhos eram duas bolas de fogo. Chamas altíssimas partiram em direção a Ishin do Gelo. Desviando-se da investida, rolou pelo chão para longe. Aos ferimentos que ainda sangravam mancharam o chão.
Sabia que aquela batalha podia custar-lhe a vida, mas estava disposta a arriscar. Lançou uma estacada afiada na direção do peito da oponente, mas ela foi mais rápida e a derreteu.
O Quinto Arcanjo não pensou direito no que estava fazendo, apenas se posicionou em frente à parceira e tentou conversar com ela. Mas o ataque que seria destinado a Ayla, foi redirecionado. A bola de fogo acertou Raphael diretamente no abdome. Ele foi lançado para longe. Acertando uma das pilastras de sustentação que se rachou com a força do impacto.
A jovem não poderia deixá-lo morrer, não só por que o amava, mas também por que era o seu dever. Com a agua que formou no alto do castelo fez com que a bola de fogo virasse uma pedra. Os olhos voltaram-se para Hadassa.
Ela segurava uma arma, que pensava há muito tempo ter sido destruída, era uma adaga. Aquela faca aparentemente frágil era capaz de matar qualquer um dos anjos que fosse perfurado o coração. E a Ishin do Fogo se dirigiu na direção do Quinto Arcanjo.
 Sem pensar duas vezes, e como ele mesmo havia lhe dito há algum tempo atrás, por impulso colocou-se na frente da afiada adaga que fora forjada para assassinar anjos. Sentiu a carne rasgando.
O ardor que seguiu foi como se a faca estivesse envolta no fogo. O sangue manchou a túnica branca que usava. Antes de perder a consciência, uma fina e afiada lamina de gelo atravessou o peito de Hadassa. Sem acreditar no que via, caiu aos pés dos oponentes. A chão de mármore branco foi marcado pelo sangue rubro.
Raphael tomou à morena nos braços. As lagrimas começavam a cair. Não podia acreditar no que via. Naquele momento percebera o erro que cometera. Nunca amara Hadassa. Era Ayla quem deveria estar ao seu lado. Mas agora era tarde demais. Mas a expressão do anjo que tinha nos braços era serena.
- Não chore, está tudo bem. – Os olhos verdes buscavam os seus. – Não quero que fique triste, cumpri minha missão.
- A culpa disso é minha, não deveria ter acreditado no que ela dizia.
- Shhhhh. – Colocou os dedos sobre seus lábios para calá-lo. – Você não tem culpa de nada. Tudo deveria ter acontecido assim. Lembre-se que não podemos mudar nosso destino. Que não somos nós quem escolhemos o que queremos fazer. – Um sorriso moldo seus lábios. - Quero lhe pedir uma coisa.
- Peça o que quiser. – As lagrimas banharam seu rosto.
- O último beijo.
Atendendo ao desejo da amada, beijou-a sem pudor. Os lábios se moldando aos dela, sentindo o gosto do sangue quente que as invadia sua garganta. Nunca deixaram transparecer seus sentimentos diante dos outros Arcanjos. Mas aquele era o momento. Tudo o que fora guardado durante tanto tempo estava sendo demonstrado agora.
Os lábios se moldavam. Eram perfeitamente simétricos. Feitos um para o outro. Ele sentiu o corpo ficar flácido em seus braços. Havia acabado. Ela estava morta. Uma existência gloriosa acabava da maneira que deveria. De maneira heroica. Os olhos verdes se apagaram. O corpo pendeu nos braços do Quinto Arcanjo. Ele honraria para toda a eternidade a lembrança da Ishin do gelo.

Epílogo

            Acordar naquela manhã foi incrível. Tinha a melhor das sensações. Sentia-se leve, como se pudesse flutuar. Pela janela era possível enxergar o céu, as nuvens acinzentadas impediam a passagem dos raios de sol, dando ao quarto uma luz agradável. Iria chover, e isso agradava.
 Com um sorriso delicado nos lábios rosados, virou-se para observar o jovem rapaz que dormia ao seu lado. Depois do período em que passaram separados tudo estava diferente. Eles se amavam mais que antes e não escondiam isso de ninguém. Ela não deixaria que nada e nem ninguém atrapalhasse sua felicidade agora.
 Tinha certeza que o amava e, principalmente, que era correspondida. Tocou-lhe o rosto arrumando a mecha de cabelo cor de bronze que caia. Ele se mexeu e despertou. Os olhos verdes se abriram e a fitaram. O olhar estava iluminado. Sempre passavam incontáveis minutos trocando olhares. Eram mais que um casal, eram cúmplices. Sabiam tudo um do outro, conheciam todos os segredos. Nada que dissessem naquele momento seria mais apropriado que aquele simples gesto. Após um instante, ele a puxou para junto de si e a beijou.
- Bom dia, meu amor. – Era o bastante. O silencio não precisava ser preenchido com palavras vãs.
- Bom dia.
A sensação de paz e tranquilidade reinava no quarto. O sonho que tivera na noite anterior a deixara assim. Não teria medo de arriscar, queira somente estar ao lado dele. Depois de tudo que passara não perderia mais nenhum instante dando ouvidos ao que os outros lhe dissessem, eles pertenciam um ao outro e era apenas isso que importava.
Ela o beijou novamente. E se entregou como se fosse a última vez. Ayla e Raphael se amavam nada os separaria. Nada faria com que deixassem de acreditar no que diziam.
Mas não era apenas uma conjunção carnal. Eram ligados de uma maneira especial. Era um encontro de almas, um sentimento que sobreviveria ao tempo, um amor que venceria a eternidade. 



Fim.






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